O mito do Estado Laico

Entre a bíblia e a Constituição, a democracia brasileira é construída ao lado da crença divina

por José Vieira

Arte: Rebeca Fonseca / Fotos: Freepik, Marcos Santos/USP Imagens e Wikimedia Commons

O primeiro turno das eleições presidenciais guiou o Brasil para algo que a nação tem se preparado desde 2018: o confronto direto entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL). Antecedido por debates com candidatos que representaram coadjuvantes na cena eleitoral do país, o nome que ocupará o cargo de chefe do Executivo será decidido em 30 de outubro, o último domingo do mês. 

Se por um lado o atual presidente da República foi derrotado no campo das porcentagens, com um total de 43% dos votos válidos, por outro, suas ideologias ganharam fôlego nas demais esferas públicas. Os candidatos que ocuparão o Senado e a Câmara dos Deputados em 2023 refletem o fortalecimento do bolsonarismo nos últimos anos. Com base na defesa dos valores cristãos e da  família tradicional brasileira, o uso da religião como mecanismo de influência mostra-se efetivo — o que não é uma novidade para o país.

Nas semanas que antecederam o primeiro turno, uma publicação nas redes sociais viralizou ao mostrar como a igreja exerce seu poder em um tipo de voto de cabresto contemporâneo. Pelo Twitter, um usuário compartilhou com seguidores um santinho político recebido por sua avó durante um culto. “Minha avó é uma senhora evangélica de 64 anos, nunca soube ler nem escrever”, contou Caio. Na cola eleitoral, um aviso intimidador: “O momento é gravíssimo e inegociável. Um alerta do pastor Silas Malafaia”.

Em São Paulo, colas eleitorais também costumam ser distribuídas em ambientes religiosos. Nas impressões que prepararam os eleitores para o dia 2 de outubro, Bolsonaro costumava aparecer ao lado de Tarcísio Freitas, candidato para o governo do estado, o senador Astronauta Marcos Pontes e algum deputado federal ou estadual que defendesse uma agenda pautada pelos princípios bíblicos e conservadores.

https://twitter.com/SWANV0CAL/status/1571960642109595655

Existe um ditado popular que diz que política não se discute. Com um histórico de privilegiar as elites brasileiras, o debate democrático manteve minorias afastadas por muitos anos. Assim, o tema se tornou algo complexo e distante do cotidiano da camada periférica do país — afinal, grande parte das manifestações lideradas pela população economicamente desfavorecida foi recebida com agressividade por parte do Estado.

Tal fator persegue a história do Brasil. A construção do país é manchada pelo abuso de poder dos religiosos que ocuparam o país. As missões jesuíticas, entre os séculos 16 e 18, tinham o objetivo de catequizar os povos originários e, consequentemente, adaptá-los aos padrões eurocêntricos. A imposição forçada de uma cultura exterior, somada à exploração realizada pelos portugueses, foi responsável por assassinar 56 milhões de indígenas entre 1492 e 1600, segundo estudos realizados pela Universidade de Londres.

De volta para o século 21: o desenvolvimento da democracia brasileira, que de vez em sempre anda cambaleando, foi invadido pela religiosidade. Aos 26 anos, Nikolas Ferreira (PL) se tornou o deputado federal mais votado do Brasil ao construir uma campanha pautada em enaltecer valores cristãos e provocar o youtuber Felipe Neto por meio de vídeos e depoimentos publicados nas redes sociais.

Ainda que a laicidade do Estado seja garantida pela Constituição de 1988, diversos eventos foram pincelados pelo cristianismo. E, no atual cenário, não teria como ser diferente. De acordo com o último censo realizado pelo IBGE, em 2010, os cristãos representam 86,8% da população do país.

Em um país no qual a insegurança alimentar atinge 33,1 milhões de pessoas, é compreensível quando parte da população não está preocupada em acompanhar os planos de governo de cada candidato; existem males maiores. É a partir dessa vulnerabilidade que a democracia conservadora nacional encontrou seu pote de ouro.

Aproveitar-se de um discurso que se baseia no cristianismo se mostrou uma ótima campanha de marketing para candidatos políticos. O chamativo é tanto que as pessoas não ligam para o fato de a ex-ministra Damares Alves, eleita senadora no Distrito Federal, ter vazado dados e tentado evitar a interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos que foi vítima de estupro. Ou então, ignoram o fato de que Tarcísio de Freitas, candidato ao governo de São Paulo, não possui nenhuma proposta para a USP, uma das universidades mais importantes da América Latina. Está tudo bem, é tudo em nome da família.

Ter fé não é necessariamente o problema. Esse texto não tem a intenção de reverter a crença divina de mais da metade dos brasileiros. No entanto, a religiosidade torna-se um problema quando passa a ameaçar a liberdade de terceiros e adentra esferas em que não deveria estar.

O impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016, é um dos exemplos em que a religiosidade excessiva se mostrou presente. Durante o processo, inúmeros votos foram justificados pela crença em Deus. O então deputado federal Jair Bolsonaro foi um deles. “Perderam em 1964, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve”, disse o político enquanto era ovacionado por parte da Câmara. “Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra a Folha de S. Paulo. Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. […] Por um Brasil acima de tudo, e por Deus acima de todos, o meu voto é ‘sim’.”

O discurso de Bolsonaro se enche de achismos e controvérsias. O candidato defende tanto a família brasileira que ignora as investigações de rachadinhas contra Flávio Bolsonaro, um de seus filhos. Defende o anticomunismo, quando o Brasil nunca ao menos teve chances de adotar o modelo econômico. E, logo após defender um torturador da ditadura militar, cita o nome de Deus. Mas que Deus é esse?

Na última segunda (3), vídeos antigos de Bolsonaro em um templo de maçonaria foram compartilhados nas redes sociais. Os registros viralizaram na internet, uma vez que a organização é abominada pelo cristianismo. Apesar da incoerência com o discurso que o presidente construiu durante sua vida pública, pastores aliados ao candidato do PL minimizaram os efeitos das gravações. “Pegar um vídeo de 2017 em que ele foi a uma loja maçônica em Brasília não muda nada. Ele é candidato de todos”, defendeu Silas Malafaia.

É como uma guerra santa. Opositores de Lula também reforçaram os ataques nas redes. Em seu Instagram, o petista precisou afirmar que “não tem pacto nem jamais conversou com o diabo”. Cristão, o ex-presidente foi quem sancionou o Dia Nacional da Marcha para Jesus, em 2009. Vale lembrar que, em agosto deste ano, a vereadora Sonaira Fernandes (Republicanos-SP) disse que “Lula já entregou sua alma para vencer essa eleição”. A declaração foi feita após o candidato do PT aparecer com apoiadores adeptos de religiões afro-brasileiras. Nota-se que, os mesmos que insistem em manter uma narrativa de perseguição ao cristianismo, são os que atacam e tentam ameaçar a liberdade de terceiros. A questão que fica é: se Jesus voltasse, com todos seus dogmas de amor e empatia, será que ele seria bem recebido por aqueles que clamam seu nome?

https://twitter.com/AssLatam/status/1577717750033567747