Memória por um fio

Entre conversas com amigos e descansos nos sofás, não podemos nos esquecer de lembrar

por Rebeca Fonseca

Um dos cartazes da instalação artística no DCE. Na foto, Alexandre Vannucchi Leme, morto pela repressão em 1973. Fotos: Matheus Nistal/JC

Lauriberto foi alvejado por quatro tiros em uma emboscada. Ísis foi forçosamente desaparecida e seu corpo nunca foi encontrado. Luiz foi torturado até a morte. Iara foi assassinada com um tiro no peito. Nelson foi sequestrado e nunca mais visto. 

Toda vez que entro no Diretório Central dos Estudantes (DCE), ao lado do Bandejão Central, sou encorajada a lembrar destas histórias. O motivo? Os barbantes pendurados no teto que sustentam a versão resumida da militância desses e outros oito alunos da USP vítimas da ditadura militar. Não à toa, o espaço recebe o nome de uma delas: Alexandre Vanucchi Leme.

Tentando ser mais rápida que os ponteiros do relógio ou conversando com alguém, sempre passo pelo DCE, mas demorei algum tempo para perceber que aqueles rostos me encaravam. Em um dia, com menos pressa que o normal, escolhi um sofá do espaço para descansar, despretensiosamente olhei para o lado e finalmente notei que alguém me olhava de volta. Aproximei-me e descobri o inusitado memorial. 

O mal-estar que senti foi instantâneo, a angústia se misturava à raiva e a vontade de gritar subia em minha garganta. Quis sair perguntando quem já tinha visto que naquelas folhas de papel A3 amassadas, sujas e úmidas, nomes, fotos e histórias de resistência contra a repressão estavam registradas. Quem já tinha dignificado aquele álbum suspenso com mais de um segundo de atenção? Quem já tinha parado para ler que Lígia, militante da Vanguarda Armada Revolucionária, era também estudante de Pedagogia? Ou que Norberto, antes de ser morto em sessões de tortura, foi professor da Faculdade de Economia e Administração? 

Nosso cotidiano que não aceita perturbações, a inércia de todos os dias e o automatismo rotineiro de cada passo se colocam entre nós e aqueles rostos presos na história. Temos vergonha de encará-los e reconhecer que vivemos em um limbo entre ditadura e democracia, que seus legados não estão sendo honrados como deveriam. Os olhares provocadores são ignorados, viramos o rosto e deixamos os papéis ao léu sem perceber que poderíamos ser nós no lugar deles.

A culpa, porém, não é minha nem sua: há um projeto político que desvaloriza a verdade e a memória, porque esquecer é mais conveniente ao poder. No lugar da revolta e do lamento, somos ensinados a resignação e o desinteresse. O modo de agir é metonímico: ignoramos os cartazes (parte) como ignoramos e desconhecemos a própria história da ditadura (todo).

A menos de um mês do fim do pesadelo coletivo que enfrentamos desde 2019, a Comissão de Mortos e Desaparecidos corre risco de extinção. Some-se a isso a Lei de Anistia que impede a justiça às vítimas, as celebrações nada envergonhadas ao golpe civil-militar de 1964, o encerramento da atividade de grupos responsáveis por identificar ossadas de vítimas dos anos de chumbo e o clamor néscio pela ruptura da ordem democrática em bloqueios de rodovias e não chego a outra conclusão senão que tudo caminha rumo ao esquecimento e ao negacionismo histórico. 

Isso porque se conhecemos cada luta travada para a conquista e defesa de direitos, cada gota de sangue inocente derramada, cada mentira contada e cada voz sufocada, nos tornamos estorvos, começamos a fazer perguntas e cobranças demais, exigimos a responsabilização de nossos algozes. Mas precisamos lembrar, porque o passado é hoje e pode ser amanhã também. 

O autoritarismo, as violações aos direitos humanos e a ascensão da extrema-direita ao poder não aconteceram uma só vez na história do Brasil para nunca mais darem as caras. Quem nos trouxe até aqui precisa ser recordado para que erros históricos sejam reparados e novos caminhos sejam trilhados, em oposição ao que acontece hoje com a manutenção de estruturas de opressão.

É um ciclo que se retroalimenta: a cultura do esquecimento faz com que espaços de memória deem lugar a ruas com nomes de torturadores e monumentos em homenagem a genocidas, mas é também por causa dessas construções que esquecemos dos crimes cometidos não só em 21 anos, como toda a violência que perpassa a história de construção do país. Lembrar e prestar atenção em cada vestígio de memória é parte do processo de quebra desse ciclo.

Agora, quando entro no DCE, sei que não escuto só vozes do presente. Das paredes, o passado também fala comigo: os mártires gritam para romper os silêncios sobre suas vidas e o período em que elas foram interrompidas. Dentro de cada cartaz, está uma tentativa de preservar a história. Encará-los é o primeiro passo para que no futuro, novos rostos e histórias de horror não tenham que ser pendurados em fios.