Professores negros da USP propõem reserva de vagas para PPIs

Meta de 37% de pretos, pardos e indígenas no quadro de docentes será votada em reunião do Conselho Universitário

por Antônio Misquey e Bianca Camatta

Foto: Lara Paiva/JC

No ano em que a Lei de Cotas completa dez anos da aplicação para estudantes de todo o Brasil, o coletivo de docentes negras e negros da  USP se posicionou de forma oficial contra o racismo estrutural instaurado no quadro de professores. Em carta enviada no dia 9 de novembro à Reitoria da Universidade, o grupo propôs uma meta de inclusão de 37% de professores pretos, pardos e indígenas entre os contratados.

Hoje, essa porcentagem é de apenas 2,3%: a USP conta com 5.531 docentes e apenas 125 deles não são brancos. A realidade chocante na maior universidade do país evidenciou a urgência na implementação de políticas de ações afirmativas a favor da diversificação do quadro de professores. As reivindicações, bem anteriores a 2022, foram transformadas na “Carta de docentes negras e negros da Universidade de São Paulo”.

O manifesto, publicado em julho e assinado por 35 docentes negros da Universidade, discorre sobre o panorama racial desigual em todas as áreas do campus. O professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos, Celso Oliveira, explica que as medidas propostas pela carta fazem parte de um modelo que possibilitaria a maior inserção de pessoas negras na ciência. 

“Os alunos buscam referências. É muito difícil para um aluno negro entrar e fazer todo o curso sem ter nenhum professor negro ou uma professora negra, na qual ele possa olhar”, comenta. Além da referência para os estudantes, o estímulo ao combate ao racismo e a reparação histórica a essa população são as maiores prioridades do manifesto.

A proposta

A proposta oficial, que sugere a reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas no quadro de professores da USP, também inclui a criação de uma banca de heteroidentificação, a qual o candidato deve ser submetido antes da realização das provas; a abertura de novos concursos públicos, com finalidade de assegurar o cumprimento da meta; e um sistema de desempate que contribua com a contratação de profissionais PPI, preferencialmente mulheres.

O documento especifica que o objetivo passa a ser cumprido imediatamente após uma eventual aprovação. Dessa forma, vagas em aberto que não forem preenchidas já devem atender à demanda. A medida vale para todos os concursos públicos da Universidade e, caso nenhum candidato PPI seja aprovado em um edital, a vaga deve ser repassada para o próximo concurso a ser aberto, até que haja um específico para PPIs.

Celso conta que o pedido de reserva de 37% das vagas se deu devido à porcentagem da população autodeclarada negra no estado de São Paulo, que corresponde a essa mesma proporção, segundo dados do IBGE. Assim que a Reitoria se posicionar em relação à proposta, a pauta deve ser votada em reunião do Conselho Universitário. Não há estimativa de data para a decisão.

O coletivo também reivindica a presença de, no mínimo, duas pessoas não brancas na banca avaliativa dos concursos. Em caso de impossibilidade, haja vista a pouca quantidade de professores PPIs, o departamento ou o curso teria a liberdade de convidar outros representantes desse grupo para compor a equipe. O setor de Recursos Humanos e a Reitoria da USP seriam os responsáveis por regular a reserva das vagas e o cumprimento da meta.

A experiência do professor negro

Celso comenta que, apesar do movimento negro sempre ter existido na USP, não havia abertura para as reinvidicações do grupo por parte da Reitoria. Com a recente criação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), a Universidade vive uma abertura histórica. “Essa demora é uma demora da própria estrutura da USP de se reconhecer enquanto parte integrante de uma sociedade racista”, aponta o professor. 

Mais uma vez, fica evidente o atraso da USP para implementação de políticas afirmativas em relação ao restante do país. A Lei 12.990, promulgada em 2014, prevê, para as instituições federais de ensino, a reserva obrigatória de um quinto das vagas de professores em concursos públicos para candidatos autodeclarados pretos e pardos. Em 2020, de acordo com pesquisa do Ipea, a porcentagem de docentes negros era de 23,4%, valor bem acima dos 2,3% da USP.

Em uma Universidade com docentes majoritariamente brancos, surge o questionamento dos desafios enfrentados pela minoria. Para Dennis de Oliveira, professor do curso de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes, da USP, a dúvida das pessoas sobre a capacidade dos negros gera uma autocobrança grande enquanto professor ou pesquisador. Para ele, para além do racismo, as vivências são diferentes, o que pode causar dificuldades no relacionamento com outros docentes.

Celso também conta que as pessoas têm estereótipos racistas formados sobre professores e pesquisadores da USP. Para muitos, uma pesquisa de excelência e um pesquisador negro são imagens que não se associam facilmente. “Isso a gente sente na pele. Isso é o cotidiano das pessoas negras que vêm vencendo essas barreiras dadas pela academia”, diz.

Em um palco protagonizado por universitários dos mais diversos cursos, a luta contra o racismo estrutural começa de baixo para cima. Celso acredita que a juventude tem poder reivindicatório e de propor novas ações para o futuro, principalmente, por estarem em maior número e diversidade na USP. “Os estudantes têm um papel fundamental nesse processo, participando de organizações estudantis ou de coletivos negros de estudantes”.

Dennis acrescenta que caso as cotas PPI para professores existissem quando ele era estudante, a sua vivência universitária seria diferente. “Muitos docentes não entendem as dificuldades dos alunos negros tanto de repertório quanto de dificuldade de transporte ou de trocar um emprego que paga mais por um estágio obrigatório na graduação”, pontua. “Temos dificuldades de nos inserir socialmente. Eu superei isso com engajamento no movimento estudantil”.