Contrabando na Bacia do Araripe parece ficção, mas é real e as escavações pelo tema levam a outros fósseis, lugares e vieses colonialistas
por Pedro Guilherme Costa
Arte: Beatriz Sardinha/JC
No último dia 21 de outubro, o fóssil de uma aranha nomeada em homenagem à cantora Pabllo Vittar foi repatriado ao Brasil. A Cretapalpus vittari foi da Bacia do Araripe, no Ceará, para a Universidade do Kansas, nos EUA, de forma ilegal. Os paleontólogos Matthew R. Downen e Paul A. Selden, que fizeram a descrição técnica do aracnídeo pré-histórico e que pensaram na homenagem, se colocaram à disposição para ajudar no processo de repatriação.
A ação ocorreu após observações de outros paleontólogos e da repercussão de uma investigação do Ministério Público Federal, que já estava estudando a possibilidade de contrabando. Depois de algum tempo fora de casa, Vittari e outros 35 fósseis estão oficialmente no Museu de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri, no Ceará.
Mas nem sempre esse retorno à terra natal é tranquilo, sem obstáculos e com a prontidão dos museus estrangeiros. E para agravar a situação, no Brasil o cenário de tráfico de fósseis é tão sólido quanto uma rocha pré-histórica. Uma matéria da Folha de S. Paulo, com mais de 10 anos, já denunciava o tráfico massivo no Araripe. Nesse cenário em que os fósseis contrabandeados se convertem em milhares de dólares, Vittari é só a ponta da escavação.
Fóssil da aranha Vittari. Foto: Journal of Archeology/Reprodução
Com o destaque no caso abrem brechas para explorar a profundidade cultural e científica dos fósseis, para então entender a gravidade dos casos recorrentes de tráfico. Essa matéria do Jornal do Campus ouviu Luiz Eduardo Anelli, professor e paleontólogo do Instituto de Geociências da USP e coordenador da oficina de réplicas, um dos projetos de cultura e extensão com mais tempo de continuidade na universidade. O objetivo do projeto é reproduzir diversos fósseis para exposições, aulas práticas, estações de ciência, etc.
Além disso, atualmente também se dedica à literatura e à carreira de escritor: “hoje eu tenho mais de 20 livros sobre dinossauros, a maioria deles tratando de dinossauros brasileiros, que são ilustres desconhecidos. Meus livros tiveram 4 indicações ao Prêmio Jabuti. Eu ganhei um Prêmio Jabuti. Já viu um Prêmio Jabuti?” Disse o professor, mostrando o prêmio e fazendo um comentário divertido sobre o tamanho do troféu.
Breve história e fósseis como patrimônios
Os fósseis já passaram por inúmeras interpretações na história humana. Energia materializada, fonte de medicamentos, entre muitos outros. Até que no século XVII, a linha de semelhança entre um fóssil de um animal extinto e um osso de um animal contemporâneo começou a ser traçada.
Nesse processo de descobrimento e associação, até mesmo a geologia avançou. Os naturalistas e os pesquisadores que estudavam as minas de carvão na Inglaterra perceberam: “tenho uma rocha aqui, na minha cidade, e ela tem tal e tal fósseis. Aí ele viajava 100 milhas e encontrava a mesma rocha, com os mesmos fósseis. Essas coisas estavam conectadas e a erosão apagou o meio. E assim eles começaram a perceber que os fósseis tinham uma função no entendimento das rochas, em como elas eram acamadas, como elas se comunicavam através dos fósseis”, complementa Anelli.
Com o avanço da Teoria da Evolução e da ideia de extinção, muitos períodos foram determinados inclusive pelo aparecimento e desaparecimento de certos animais. Essa contribuição fez com que um dos maiores patrimônios culturais da humanidade, o tempo geológico, fosse enfim demarcado.
E muito já se passou desde que os fósseis eram vistos como ossos antigos inexplicáveis. Hoje eles possuem uma grande importância cultural. Nesse ponto, Anelli acrescenta que os fósseis são uma oportunidade de entretenimento intelectual e científico, que te aproxima da ciência e que levam crianças ao museu. Além disso, faz com que elas muitas vezes se aventurem na literatura, por um lado para admirar as criaturas fantásticas que já pisaram por aqui, mas também para entender como esse mundo se formou.
“Nós precisamos tirar proveito do fato de que as crianças amam os dinossauros e que elas serão o futuro desse país. Daqui há 50 anos são eles que vão estar lá comandando a Amazônia, o Pantanal, o Aquífero Guarani, o Petróleo. São eles. Então nós temos essa oportunidade super legal”, completa Anelli.
Olhando de uma outra escala, fósseis também são uma peça-chave no patrimônio cultural e científico de um país como um todo, já que demarcam a sua participação, sua coluna cultural, na pré-história. Mas os fósseis, nem se seguissem o pensamento antigo grego e se desintegrassem, conseguiriam fugir de certas mentalidades da humanidade. Os fluxos de fósseis contrabandeados levam a alguns focos interessantes: países com um passado imperialista, famosos por históricos saques culturais.
Um dos casos mais famosos de repatriação aconteceu no ano passado. Do Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo (MuCem) em Marseille, na França, de volta ao Marrocos: 24.459 mil artefatos arqueológicos raros recuperados, dentre eles fósseis do Paleolítico e Neolítico. O volume impressiona, mas esse é só mais um dos inúmeros casos em que o fluxo de patrimônios culturais vai de países colonizados para colonizadores, do hemisfério sul para o norte. Os jazigos fossilíferos brasileiros também são marcados por cicatrizes fossilíferas, principalmente na Bacia do Araripe.
Geologia e os fósseis brasileiros
Mas para falar do tráfico no Brasil, é necessário retornar um pouco na parte geológica para dar profundidade ao problema. Qual é a coluna do Brasil na pré-história e porque comparado a outros países da América do Norte ou da Europa, possuímos um registro baixo de fósseis? “Nós tivemos uma pré-história profunda, sem muitos privilégios”, indica o professor.
O que hoje constitui o território nacional passou por momentos difíceis no passado, como por exemplo: grandes períodos em latitudes muito altas, no frio, sob geleiras, com grandes desertos e na ausência do mar por um longo período. Todos esses fatores influenciaram na nossa diversidade e quantidade de fósseis. Mas por um outro lado, possuímos uma página especial na história dos dinossauros, uma que muitos países sonham em ter: o princípio.
“Por exemplo, nós temos uma camada de rochas aqui que só se depositou no Brasil em todo o mundo. Ela só existe no Brasil, com os restos dos primeiros dinossauros que existiram”, indica o professor. “Nós temos o Araripe no Ceará, de onde vem a aranha, o cogumelo mais antigo do mundo, pterossauros, aqueles voadores inteiros com tecidos preservados com a crista. Um peixe com um coração fossilizado dentro. Dinossauros, plantas, flores fossilizadas. Esses dois (Araripe e Agudo) estão entre os 10 jazigos fossilíferos mais importantes do mundo”.
A descoberta de fósseis em terras nacionais traz reconhecimento e prestígio ao país, revista e pesquisador que o descreve, garantindo mais financiamento para prosseguir com as pesquisas. Por outro lado, valoriza os museus e a cultura, faz com que as pessoas possam voltar à pré-história. Então o tráfico de fósseis no Brasil, unindo todos esses contextos de geologia, financiamento e valorização cultural, ganha mais uma camada de gravidade.
Principais casos de contrabando ilegal no Brasil
Além do caso da aranha Vittari, que foi resolvido de forma relativamente tranquila, outros episódios não possuem a mesma sorte e a mesma “generosidade” dos museus que retém os fósseis. O Ubirajara jubatus foi um dinossauro brasileiro que viveu a cerca de 110 milhões de anos e que tinha o porte de uma galinha, com penas e um formato bem diferente dos dinossauros mais famosos, como T-Rex e Pterossauro. Ele viveu na Bacia do Araripe, a mesma região que abrigou a aranha.
Fóssil do jubatus, que foi encontrado com tecidos preservados. Foto: Cretaceous Research
A partir de uma descrição científica na revista Cretaceous Research, em dezembro de 2020, pesquisadores brasileiros começaram a contestar. Por que um fóssil encontrado no Ceará está no Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha? Acontece que há mais de 9 mil quilômetros de distância do local de origem, o Ubirajara está fossilizado por leis alemãs que blindam a devolução do fóssil.
Os pesquisadores alemães usam o pretexto jurídico próprio, por uma lei de 2007, como argumento principal, sendo que a compra e a retirada de fósseis no Brasil é ilegal desde 1942, com um reforço em 1990. A justificativa burocrática do museu passa por cima até mesmo de uma lei da UNESCO, que também foi instituída em 1970. O Ministério Público Federal investiga o ocorrido e a venda do fóssil na região do Araripe, na década de 90. Além disso, o MPF também formalizou um pedido de cooperação para repatriar o Ubirajara. Até o dia 18 de Outubro, ainda não tinha obtido resposta.
Esse caso possui idas e vindas há mais de um ano e contou com um forte movimento na internet e na comunidade científica pela repatriação do fóssil. A hashtag #ubirajarabelongstobr (Ubirajara pertence ao Brasil) tomou as redes sociais como mais uma das mobilizações para recuperar o patrimônio. Um abaixo-assinado, com mais de 10.000 assinaturas até a data desta matéria, também busca trazer o Ubirajara de volta ao Brasil. Mas por enquanto, ele continua fossilizado no Hemisfério Norte.
Outro caso que também repercutiu nos últimos anos é o do fóssil de pterossauro brasileiro Anhanguera santanae. O dinossauro voador também saiu do Araripe, no Ceará, mas dessa vez foi parar em terras francesas, mais especificamente na cidade de Lyon. Um cidadão da cidade, que atuava em um dos maiores laboratórios de reconstrução e reparação de fósseis no país, estava vendendo o fóssil por US$ 248,9 mil no Ebay.
A paleontóloga Taíssa Rodrigues, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), percebeu a atividade suspeita e logo acionou o MPF. Após 5 anos de investigação e apuração, o processo judicial se encerrou com a cooperação das autoridades francesas. No total, 46 fósseis foram repatriados e o Anhanguera provou novamente os ares brasileiros. Uma vitória importante para a comunidade de paleontologia no Brasil, que levou esperança mas ao mesmo tempo preocupação pelos casos ainda enterrados em galpões e museus de outros países.
Ao ser perguntado se já tinha presenciado casos como esse de perto, Anelli conta que “a vida inteira, cara. Desde que eu cheguei na Geologia, eu tava como professor em 98 eu acho, foi a Polícia Federal lá e falou ‘vêm com a gente’. Aí me levaram em um cortiço lá no centro de São Paulo, a gente entrou no porão e tava lotado de fósseis, contrabandeados”.
Em outra ocasião, relata: “uma vez eu estava no Rio de Janeiro e um paleontólogo me falou que um professor, pesquisador em Nova York, do Museu de História Natural de Nova York, havia recebido uma carga com 50.000 insetos, fósseis de insetos aqui do Brasil. 50.000, cara.”
Durante a entrevista, o professor falou sobre diversas questões envolvendo a legislação nacional. Uma delas foi sobre a dificuldade de fazer trocas legais de fósseis entre países, o que prejudica a comunicação e agrava os casos de tráfico. “A gente é saqueado direto e a gente não consegue mudar a legislação de modo que a gente possa por exemplo favorecer o intercâmbio. ‘Ah você quer insetos, nós temos insetos. O que vocês tem aí pra nós? Ah, nós temos peixes’. Beleza, vamos trocar, e troca. A gente não consegue fazer esse escambo”.
E quando eles voltarem?
E quando esses fósseis voltam? Com o sucateamento da Ciência nacional e com as frequentes notícias de cortes nas verbas da área, o retorno, por mais que seja reconfortante, pode ser difícil. Há 3 anos, o Museu Nacional, situado no Rio de Janeiro, queimava com múmias, exemplares de insetos, coleções culturais e fósseis.
A perda inestimável se repetiu em outros museus, como o Museu da Língua Portuguesa e o Museu de História Natural da UFMG. As chamas, por mais paradoxal que pareça, são só a ponta do iceberg nessa discussão. A pergunta pulsa: como protegemos o nosso patrimônio cultural?
“Esses fósseis tinham que ser todos repatriados, tinham que vir todos embora. Mas tem que ter um ótimo museu pra eles serem guardados. E onde está esse museu? Com segurança sofisticada, contra incêndios, onde está? A gente queima tudo, cara”, termina o professor Luiz Eduardo Anelli.