Medo de se afogar no mar de possibilidades

Para estudantes que vêm de outros estados, estudar na USP é um mar de possibilidades e oportunidades, mas que vem acompanhado pela saudade de casa e medo de afundar nessa imensidão

 

 

por Ana Paula Alves

Arte: Marina Bittencourt/Fotos: Jason Blackeye, Nasa, Frederico Baccari e Joshua Sortino/Unsplash

 

Eu abri a lista em minha tela, procurei pela minha inicial. Lá estava: meu nome.

Senti meu coração palpitar, li mais uma vez, para ter certeza. Li uma terceira vez. E uma quarta. Realmente era o meu nome, estava na lista de aprovados. Eu paralisei.

Eu ia estudar na universidade que queria, fazer o curso que escolhi! Não precisaria fazer o vestibular de novo, nem recorrer aos planos alternativos. Meus pais ficariam orgulhosos de mim!

Eu ia estudar na USP, universidade renomada. Que fica em São Paulo, em outro estado, a centenas de quilômetros de distância da minha cidade. Eu ia ter que sair de casa, morar num lugar desconhecido, longe de tudo. Se algo acontecesse comigo, eu não teria ninguém ali. Não conhecia ninguém em São Paulo. Não conhecia absolutamente nada em São Paulo!

Muitos pensamentos me atingiram ao mesmo tempo. Eu ia ter que largar tudo aqui, para ir pra um lugar completamente estranho! E se eu não gostasse de lá? O que eu faria se não conseguisse ter amigos lá? E se o lugar que eu vou alugar for ruim? Como eu agiria se alguém fosse xenofóbico comigo? E se eu odiasse o curso que escolhi? O que eu poderia fazer se acontecesse alguma coisa com a minha família enquanto eu estiver longe?

Eu não me sentia capaz de enfrentar todas essas questões, entrar na faculdade, mudar de estado, me virar sem ajuda de ninguém, era demais para mim! Será que eu realmente deveria fazer isso?

Mesmo que eu já estivesse me preparando para essas possibilidades, quando eu vi o meu nome, tudo se tornou real demais, palpável demais. Junto com a felicidade de ter passado em uma universidade pública, o medo e a insegurança me dominaram.

Mas eu já tinha tomado minha decisão meses antes e não achava que poderia mudá-la de uma hora para outra. Afinal, minha família torcia tanto para isso acontecer, todos me falavam das oportunidades que eu teria se fosse para lá, de como poderia ser bom para mim. Então eu lutei para passar por cima desses medos, que de forma alguma desapareceram, e começar o processo de mudança.

Procurar um lugar para morar foi o mais estressante. Meus pais não queriam que eu morasse em uma das repúblicas, tinham medo de não ser seguro, de ser bagunçado, entre outras preocupações típicas. Eu concordava, em parte, com eles, então comecei a procurar outros tipos de lugares. Nunca imaginei que uma kitnet caindo aos pedaços pudesse ter um aluguel tão caro. Foi difícil encontrar algo que coubesse no orçamento e que, ao mesmo tempo, não parecesse um quarto de cativeiro. Além disso, não sabia quais eram os lugares “bons” ou “ruins”, onde era perigoso ou não. Então tive que basear minha escolha em pesquisas no Google de fonte duvidosa.

Mas nenhuma das várias preocupações e medos que surgiram se comparavam ao que eu sentia ao pensar na minha família, em especial, em meus irmãos mais novos. Saber que eu não estaria lá quando precisassem de mim, que eu não poderia protegê-los, cuidar deles, que eu não poderia estar no dia-a-dia deles. Minha rotina de ouvi-los correndo, brincando e rindo pela casa, simplesmente sumiria de uma hora para a outra. Eu sentia como se uma parte de mim estivesse sendo arrancada, brutalmente decepada do meu corpo. A saudade já doía antes mesmo de eu ir embora, me forçando a me perguntar novamente: Será que eu realmente deveria fazer isso?

Mesmo com esses questionamentos, em poucas semanas eu estava em São Paulo e começava a viver o primeiro ano na universidade. O que não foi nada fácil. Muitas inseguranças ainda persistiam, a principal era: como eu poderia me adaptar a esse lugar?

Tudo era diferente. Grande demais, extenso demais. Eu não me sentia pertencente a tudo aquilo. Minha casa não era minha casa, era um ambiente estranho no qual eu não me reconhecia. Sentia falta do meu antigo quarto, da cor das paredes e de como o sol atingia minha mesa no meio da tarde. Em São Paulo, eu estranhava os móveis, que eu não tinha escolhido, a disposição deles, a posição da porta, a janela pequena e o piso frio. Nada parecia certo.

Segui tentando me acostumar, mas nos primeiros meses tudo que senti foi esse estranhamento e insegurança nos ambientes que me rodeavam. Era como se meu corpo se dispersasse, eu me desligava, nunca tinha uma presença sólida ali, apenas flutuava por entre as ruas e prédios, passando pelas pessoas, sem me conectar a nada. Não conseguia me fazer materializar de fato, estava sempre longe.

Isso só piorava quando eu me via tentando conversar com meus colegas. As diferenças culturais me atingiram como um soco no estômago. As pessoas pareciam mais fechadas em si e em seus grupos pré-programados, barreiras em forma de silêncios constrangedores se erguiam entre mim e elas.

Nem a própria comunicação era tão efetiva. Às vezes eu me sentia falando outra língua. Quando eu dizia algo que fazia completo sentido para mim, mas me voltavam um olhar confuso, quando eu usava uma expressão que eles não entendiam ou quando eles usavam gírias que eu nunca tinha ouvido antes.

Além disso, o medo de rejeição também era paralisante. Tinha medo de acharem meu jeito estranho, de zombarem do meu sotaque, de não conseguir fazer amigos em todos os anos que eu permanecesse ali, de me tratarem diferente por eu não ser de São Paulo. Eu remoia cada frase que dizia, cada gesto involuntário, pensando se as pessoas começariam a desgostar de mim por conta disso. Qualquer conversa era motivo para uma crise de ansiedade escondida no banheiro da faculdade. Por isso, passei a me negar a qualquer interação, pensei que não queria me “misturar” com aqueles paulistas.

Foram necessários muitos meses e sessões de terapia para minha relação com esse lugar começar a mudar. A terapia me ajudou a me sentir mais presente, a finalmente conseguir me materializar mais naqueles espaços, senti-los de verdade, viver os momentos que aconteciam neles. Eu comecei a entender que estava tudo bem se nem todo mundo gostasse de mim ou me quisesse por perto, percebi que minha negação em me “misturar” com as pessoas não era sobre elas, era sobre mim, sobre meus próprios medos e inseguranças.

Nesse processo, consegui ver que todos ali eram pessoas comuns, eu só precisava encontrar aquelas com quem eu me identificava. E eu ia encontrar elas, essa era a parte boa sobre o quão grande São Paulo era: seria impossível que, em um lugar com tanta gente, eu não encontrasse pessoas que gostassem de mim e quisessem minha companhia. Essa percepção me ajudou, aos poucos, a superar minhas paranoias e inseguranças.

Eu sei que sempre vou ser a pessoa estrangeira, sempre vou estar me adaptando. Eu sempre penso sobre o que posso fazer para viver melhor minha experiência em São Paulo, viver tudo que a USP pode me proporcionar, aproveitar cada momento da melhor forma possível. É preciso esforço, em cada dia, para que a sensação de ser “de fora” interfira menos na minha vida aqui, para que me cause cada vez menos sensações ruins. É um processo interminável, mas que eu consigo, depois de muito tempo, lidar de forma mais saudável.

Afinal, São Paulo não é só uma “selva de concreto”. Até hoje, quando percorro a cidade, vejo coisas novas, descubro pequenas maravilhas. Posso explorar o quanto quiser e sempre terá algo que não vi ainda, sempre será um verdadeiro entretenimento observar as pessoas, a diversidade entre elas, seu movimento constante. Ter novas experiências aqui se tornou um mar de possibilidades que se estende ao infinito. Antes, esse mar me aterrorizava com sua imensidão, mas agora, aos poucos, ele me cativa e me fascina cada vez mais.