Transformações econômicas da pandemia escancaram a necessidade de tributar o 1% mais rico da população
por Filipe Albessu Narciso
Arte: Mariana Marques
Considerado um dos maiores eventos de moda do mundo, o Met Gala 2021 aconteceu no dia 13 de setembro deste ano. Com uma temática direcionada a história da moda estadunidense, o evento de arrecadação de fundos para o Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque teve a presença da congressista estadunidense Alexandria Ocasio-Cortez. Democrata e um dos nomes mais relevantes na defesa de pautas progressistas nos Estados Unidos, Ocasio-Cortez compareceu ao evento utilizando um vestido branco marcado por uma frase em vermelho nas costas: “tax the rich” — traduzido ao português como taxem os ricos.
A mensagem política irreverente da congressista, que estava atendendo um dos eventos mais elitizados do país, levantou discussões sobre a contribuição que a porcentagem mais rica da população realiza ao Estado. Essa não foi a primeira vez que Ocasio-Cortez foi protagonista em favor da taxação dos mais ricos: em 2019, junto a outros representantes, ela evitou a construção de uma segunda sede da Amazon em Nova Iorque, em decorrência dos benefícios fiscais que estavam sendo prometidos à empresa.
Os Estados Unidos são, com folga, o país com o maior número de bilionários no mundo: mais de 700 pessoas e crescendo. O segundo colocado, a China, detém uma vantagem expressiva em relação ao terceiro, mas ainda assim se aproxima apenas da metade da estatística estadunidense. Esse dado é enfatizado pelo fato de que o mais rico bilionário chinês possui menos da metade da riqueza do estadunidense Jeff Bezos, homem mais rico do planeta.
Por essa razão, o debate sobre os direitos e obrigações de bilionários nos Estados Unidos possuem expressiva relevância internacional. Nos últimos anos, o mundo foi abalado por uma recessão econômica ocasionada pela pandemia de Covid-19. No Brasil, a extrema miséria e a fome aumentaram consideravelmente e se apresentaram como um dos principais problemas sociais contemporâneos. Simultaneamente, de acordo com a trigésima quinta edição da lista anual dos mais ricos do mundo realizada pela Forbes em abril, o número de bilionários explodiu de 2,095 para 2,755 pessoas. Também de acordo com a revista, 40 brasileiros adentraram a lista de bilionários somente esse ano.
Com a intensificação da concentração de renda global, tópicos envolvendo o denominado “1%” da população e seus benefícios políticos, sociais e econômicos se tornam cada vez mais relevantes. Para compreender o fenômeno da má distribuição de riqueza é necessário considerar um sistema global complexo e multifacetado.
As várias faces da riqueza — e seus impactos
Em entrevista para o JC, a pesquisadora do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da FEA/USP Ana Bottega explica como, em um ano em que a maioria da população sofreu um agravamento em suas condições sociais, milionários e bilionários atingiram lucros consideráveis. “Há alguns mecanismos principais por trás desse aumento de riqueza. Um deles é setorial, visto que houve um aumento de demanda por certos serviços de alta qualificação”, pontua. Ana explica como redes de comércio online, serviços de tecnologia e até grandes farmacêuticas lucraram diretamente com as condições impostas pela pandemia — serviços significativamente conectados a bilionários de tecnologia.
“Outro mecanismo importante são os movimentos dos mercados de capitais que, apesar de terem sofrido um baque considerável nos primeiros meses da pandemia, logo se recuperaram”, continua. Para combater os efeitos econômicos da pandemia, bancos centrais ao redor do mundo baixaram suas taxas de juros expressivamente e deram uma série de incentivos monetários, o que beneficiou diretamente as bolsas de valores. Com os investimentos em alta, a riqueza dos bilionários não só permaneceu intacta como aumentou em proporções surpreendentes. De acordo com o projeto Inequality.org, que acompanha a situação da desigualdade global, a riqueza dos bilionários americanos aumentou em 70% desde o início da pandemia. “Um aumento completamente absurdo”, expressa Ana Bottega.
O último tópico a ser levantado pela pesquisadora é a “regressividade do sistema tributário no topo”, que se refere à atenuação de impostos para a parcela mais rica da população. Ou seja, em medidas comparativas, milionários e bilionários pagam menos impostos em relação ao tamanho de suas riquezas do que as parcelas menos afluentes da população. “Esses ganhos [ficam] praticamente livres de qualquer imposto”, esclarece Ana Bottega. Em relação a sistemas tributários, a situação global geral beneficia a concentração de renda ao poupar os mais ricos, como no Brasil.
Imagem: Mokra/FreeImages
Por essa razão, a taxação de grandes fortunas e a tributação progressiva têm sido debatidas nos últimos anos. No Brasil, o Projeto de Lei Complementar n° 183 de 2019, do Senador Plínio Valério (PSDB/AM), se encontra em tramitação e defende o imposto sobre grandes fortunas. Porém, essas ideias são recebidas com resistência política e por vezes até popular. Para uma parcela das camadas menos afluentes da população, grandes empresas e bilionários são responsáveis pela geração de empregos e sua enorme influência econômica é vista como essencial e “boa para a economia”, mesmo em situações de crise.
Para Ana Bottega, esse fenômeno pode ser descrito pela aceitação das ideias por trás do termo político “trickle-down economics“, ou economia do gotejamento. Fundamental para um discurso liberalizante existente desde os anos 70 e 80, o termo aponta que onerar menos o topo da distribuição com impostos faria com que os mais ricos investissem mais seus recursos de forma produtiva. Esses investimentos ocasionariam um efeito cascata na economia, sendo capazes de gerar empregos, demanda por setores complementares, entre outros. Portanto, a ideia de gotejamento deriva do fato de que concentrar essa renda no topo faria com que eventualmente ela “gotejasse” aos mais pobres.
“Contudo, o que se observou como resultado das políticas implementadas com essa ideia foi um crescimento tímido e um aumento substancial da desigualdade”, critica a pesquisadora. Em 2011, o Fundo Monetário Internacional (FMI), uma das principais organizações que disseminavam políticas neoliberais, endossou pela primeira vez em 70 anos de história a ideia de controle de capital. Ainda assim, o enraizamento de ideias pró-acúmulo de fortunas na opinião pública faz com que pessoas sejam contrárias a políticas de redistribuição que poderiam beneficiá-las direta ou indiretamente. Mencionando uma pesquisa realizada em larga escala nos Estados Unidos, de autoria da professora de economia de Harvard Stefanie Stantcheva, Ana Bottega aponta que alguns dos fatores que explicam essa tendência são a pouca confiança no governo e a crença de que a situação de pobreza é temporária. “Tais fatores podem ser associados a uma ideologia neoliberalista, de forma geral, que ainda conserva a ideia de ‘trickle-down economics’”.
Um futuro menos desigual
O grande desafio quanto a implementação de políticas em prol da taxação de grandes fortunas, como explicitado na situação do plano de investimentos estadunidense, é político. “Riqueza confere poder a quem a possui e, assim, os bilionários e muito ricos conseguem influenciar imensamente o governo e suas decisões, legalmente ou não”, esclarece Ana Bottega.
Com a eleição do presidente democrata Joe Biden e o comando das duas casas do congresso pelo partido, o país parecia propenso a grandes transformações em suas estruturas políticas. Entretanto, muitas pautas foram bloqueadas por ações republicanas e até mesmo de democratas moderados. Uma delas envolve o plano de investimentos sociais “Build Back Better”. Para financiar o projeto, considerou-se um novo imposto para bilionários, o que desagradou consideravelmente dois senadores democratas decisivos para sua aprovação. De acordo com reportagem do New York Times, os senadores Joe Manchin (Virgínia Ocidental) e Kyrsten Sinema (Arizona) têm atraído apoio financeiro crescente de doadores de campanha conservadores por seus impedimentos às propostas de Joe Biden. “Essa influência [proveniente da riqueza], naturalmente, é exercida de forma a proteger os interesses desse grupo, que quer continuar mantendo uma riqueza desproporcional”, explica a pesquisadora.
Foto do capitólio estadunidense, local de reunião do congresso e centro legislativo do país. Foto: Ben Shafer/FreeImages
É essencial ressaltar que a taxação progressiva não é uma medida desigual contra os mais ricos, mas sim uma medida de caráter redistributivo em que quem possui mais, também deve pagar mais. Em sistemas tributários regressivos, a concentração de renda é intensificada e, portanto, a desigualdade se intensifica de forma constante e sucessiva.
Em um contexto pós-pandêmico marcado pela intensificação das desigualdades globais em proporções descomunais, ignorar a questão da taxação de grandes fortunas é conivente com as condições miseráveis que atingem, hoje, quase 27 milhões de pessoas somente no Brasil. Mas a taxação sozinha não é capaz de solucionar todos os problemas que envolvem a concentração de renda.
De acordo com Ana Bottega, “a riqueza, que é mais difícil de medir, […] é historicamente acumulada e é necessário que seja taxada para gerar justiça social”. Portanto, os indivíduos no topo hoje, em esmagadora maioria, são descendentes de gerações sucessivas de riquezas herdadas que remetem a condições históricas de opressão, racismo, genocídio e outras formas de monopólio do poder. A pesquisadora explica que mesmo alíquotas altas de imposto de renda e de impostos sobre dividendos ainda manteriam a desigualdade, no caso brasileiro, em elevados patamares.
O investimento social, como apresentado no plano estadunidense Build Back Better, poderia distribuir de maneira mais eficiente essas arrecadações para a base populacional. Investimentos em serviços públicos de qualidade, desde ensino à saúde e infraestrutura, além de considerar a questão ambiental, é a solução que mais se tem difundido pelo mundo para reduzir os impactos da desigualdade. “Ainda assim, o desafio é enorme”, conclui Ana Bottega.