Ciências humanas também são ciência

Entenda como se dá a pesquisa científica nas humanidades e porque existe uma desvalorização desse campo do conhecimento

por Victória Pacheco

Arte: Victória Pacheco / Fotos: Pixabay

As ciências humanas surgiram no século 19, durante a segunda fase da Revolução Industrial na Europa. Muito antes disso, os saberes relativos ao estudo do ser humano já estavam presentes nas reflexões de filósofos clássicos e historiadores. Porém, foi apenas no momento em que as fábricas se proliferaram pelo continente europeu, moldando um novo padrão de sociedade, que as humanidades se constituíram como um conjunto sistematizado de disciplinas.

Atualmente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a principal agência de fomento à pesquisa no Brasil, classifica como ciências humanas a filosofia, a sociologia, a antropologia, a arqueologia, a história, a geografia, a psicologia, a educação, a ciência política e a teologia. De um modo geral, essas disciplinas se dedicam à análise de fenômenos sociais, históricos e econômicos das sociedades.

Apesar de sua relevância, essa área do saber é frequentemente preterida e considerada inferior às ciências biológicas ou exatas. Em entrevista ao Jornal do Campus, especialistas da USP explicaram os motivos e as consequências dessa depreciação.

Uma ciência inferior?

Para Flávio de Campos, professor de história medieval da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), existem duas causas principais para a desvalorização das humanidades. A primeira delas é política e, a segunda, está relacionada ao senso comum. “Existe uma desvalorização sistemática por parte de alguns governantes. A diminuição das aulas de humanas no ensino médio e a destinação de uma quantidade muito maior de verbas para pesquisas na área das ciências da natureza provam isso”, diz o especialista. “Há, também, uma desvalorização discursiva que, muitas vezes, é feita pelas próprias autoridades, como governantes, prefeitos e ministros de Estado”. 

Um exemplo disso são as falas do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, que atacava constantemente os cursos da área de humanas. Em 2020, ele chegou a defender que as verbas destinadas aos cursos de filosofia, antropologia e sociologia nas universidades fossem redirecionadas para a formação de engenheiros, médicos e dentistas. À época, o presidente Jair Bolsonaro chegou a apoiar a ideia, dizendo ser preciso “focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte”. 

“A desvalorização das ciências humanas é uma política de desinformação. Uma política que potencializa a banalização do conhecimento e a multiplicação de perspectivas equivocadas sobre a sociedade, que levam ao não questionamento de práticas preconceituosas”, constata Flávio. Ainda segundo o professor, isso abre margem para distorções da história. Por exemplo, as ideias equivocadas de que o nazismo foi de esquerda e de que a escravidão no Brasil beneficiou a população negra.

Já o senso comum é responsável pela noção de que não há rigor científico no estudo das humanidades. “É recorrente a concepção, entre o público leigo, de que, nas ciências humanas, não se tem ciência, e, sim, opinião. Mas isso não é verdade. Temos método: trabalhamos com metodologias de obtenção e análise de dados e empregamos categorias conceituais estabelecidas a partir de reflexões sistemáticas”, pontua Flávio.

As particularidades

De acordo com Glauco Peres, professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH, é comum que haja, ainda, uma falta de entendimento do processo de estudo nesse campo. “Com frequência, as pessoas pedem para que os historiadores façam análises precisas do atual contexto político, esperando acertos. Mas é muito difícil ter uma opinião assertiva e correta sobre o que está acontecendo no momento. O historiador precisa de um distanciamento de tempo para entender de fato a situação”.

O professor de ciência política também explicou que o que configura as ciências humanas como ciência é a busca por um conhecimento rigorosamente formulado e verificado a respeito de algum fenômeno social. “Assim como as outras ciências, utilizamos técnicas matemáticas e estatísticas sofisticadas para analisar fenômenos sociais. O que nos distingue é, essencialmente, a natureza de nosso objeto de estudo”, afirma. 

Na mesma linha de raciocínio, Sara Albieri, professora da USP com experiência nas áreas de história e epistemologia, explica que as humanidades se estabelecem como uma área de pesquisa institucionalizada pois possuem requisitos como metodologias, procedimentos, debate e avaliação por pares, além de formas de compartilhamento e difusão do conhecimento produzido. No entanto, há um menor reconhecimento social desse saber, quando comparado a áreas como as ciências médicas ou as engenharias, já que estas costumam gerar aplicações práticas mais evidentes no dia a dia das pessoas, além de estimularem mais intensamente a divulgação dos conhecimentos produzidos. 

“No caso das ciências do homem, apenas alguns nichos de pesquisa mantêm fluente o trânsito entre a produção acadêmica, a aplicação e a divulgação. A sociologia e a economia parecem ser as mais bem sucedidas nessa tarefa e, em geral, são mais reconhecidas e valorizadas do que os campos cultivados de modo mais restrito ao intercâmbio erudito entre pares”, nota a pesquisadora.

Tessa Lacerda, professora do Departamento de Filosofia da FFLCH, concorda que a falta de aplicações práticas dificulta o reconhecimento da pesquisa em ciências humanas: “Como as humanidades, e, sobretudo, a filosofia, não geram aplicações diretas, há uma desvalorização social, como se elas não servissem para nada. Isso tem a ver também com a ideologia do neoliberalismo, que prioriza o sucesso individual em detrimento da construção de um conhecimento coletivo”. 

Além disso, os especialistas pontuaram que existe um mito de que as ciências da natureza são completamente objetivas, enquanto as ciências humanas seriam subjetivas. Na realidade, todas as áreas do conhecimento apresentam certo grau de subjetivismo.

O método de pesquisa

Segundo Glauco, embora não exista um método único compartilhado pelas disciplinas de humanas, há um modelo usual, proposto pelo cientista político americano Philippe Schmitter. Essa metodologia possui várias etapas, sendo a primeira delas a descrição de um fenômeno, acompanhada pela verificação de inconsistências nas teorias já existentes que o explicam. A etapa seguinte tem a ver com a criação de medidas para mensurar as características do fenômeno estudado. Isso pode ser feito por meio de surveys, por exemplo. 

Em seguida, é feita uma análise teórica sobre o que se observou do fenômeno e, depois, é preciso aferir a validade e a precisão dos instrumentos de medida empregados nas etapas anteriores. Caso necessário, os instrumentos são trocados, e os pesquisadores buscam entender se as novas medidas levam às mesmas interpretações anteriores sobre o fenômeno. Já na fase final, os pesquisadores avaliam se as explicações formuladas conseguem explicar relações de causalidade dentro do fenômeno.