Estudantes e professores defendem cota para pessoas trans na USP

Exclusão escolar e familiar são os principais argumentos para sustentar a reserva de vagas – que já existe em outras instituições públicas 

por Damaris Lopes

Aluna Maria Andoyiki exibe brinco com a expressão “trava” em alusão a travestis. Foto: Guilherme Castro/JC

“Existe muita coisa que não te disseram na escola, cota não é esmola”. A frase abre a música de Bia Ferreira “Cota não é esmola”, que se tornou jargão para a luta pela criação de políticas públicas de equiparação racial nas universidades públicas. Em meio ao debate sobre as reservas de vagas, estudantes e professores da USP chamam atenção para a necessidade de ampliação do sistema das cotas para pessoas trans. 

“É importante pensarmos sobre como os corpos habitam certos espaços. Quando eu entro na USP e olho para os docentes, para os funcionários e para a maioria dos meus colegas de turma, eu não vejo pessoas trans”, aponta Maria Andoyiki, aluna trans do curso de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). 

O apagamento dessas pessoas dentro da universidade espelha a realidade brasileira. Segundo a ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais –  em média, pessoas trans são expulsas de casa pelos pais aos 13 anos. Dados do Projeto Além do Arco-íris apontam que apenas 0,02% estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental. 

transsexual
Aluna Maria Andoyiki em biblioteca da USP. Foto: Guilherme Castro/JC

Os impedimentos causados pela exclusão escolar e familiar justificam a luta de uma política pública na educação que amenize a marginalização desse grupo. Para Andoyiki, “A conquista de 50% das vagas para alunos de escola pública trouxe a vivência desse grupo para dentro da universidade e gerou novas perspectivas para eles.”. Ela acrescenta: “Pensar em cotas para pessoas trans, que estão numa situação extrema de abandono, também pode criar novos caminhos para esses corpos”.

Essa vulnerabilidade não desaparece com a entrada na universidade. Para que pessoas da comunidade trans sintam-se pertencentes e confortáveis em locais majoritariamente ocupados por pessoas cis, aquelas que se reconhecem com o sexo biológico, é fundamental uma política de permanência eficaz e um ambiente estudantil mais diverso e com núcleos de apoio.

“Embora em outros espaços eu me sentisse muito mais constrangida por ser um corpo trans, dentro da USP, graças à minha rede de apoio, que inclusive é formada por outras pessoas que transicionaram lá dentro, eu me sinto muito mais acolhida”

Estudante de Ciências Sociais da USP Maria Andoyiki

 “Embora em outros espaços eu me sentisse muito mais constrangida por ser um corpo trans, dentro da USP, graças à minha rede de apoio, que inclusive é formada por outras pessoas que transicionaram lá dentro, eu me sinto muito mais acolhida”, relata a estudante. 

É possível reduzir a transfobia

As dificuldades enfrentadas por essa parcela da população vão além do campo acadêmico. Segundo dados da Antra, em 2022, o Brasil foi o país que mais assassinou pessoas trans, 131 no total. Essa violência está relacionada à falta de políticas públicas que amparem pessoas trans em situação de abandono parental, o que as relega às ruas, na maioria dos casos.  Em relação a isso, o “Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuaisbrasileiras”, da Antra, apontou que, em 2020, cerca de 90% da população trans teve a prostituição como única fonte de renda. 

Mesmo com dados que acusem a vulnerabilidade deste grupo, Gabrielle Weber, única professora trans na Universidade de Engenharia do campus Lorena da USP, afirma:  “Acho difícil ter políticas de cotas trans tão cedo, pois isso não é uma preocupação da atual reitoria. A USP ainda se identifica como uma universidade elitista e faz questão de mostrar isso ao relutar para debater questões sociais como essa”. 

Imagem: arquivo pessoal professora Gabrielle Weber

“As cotas seriam um caminho para diminuir a violência, pois começamos a tirar essas pessoas da rua, onde há uma violência direta”, diz Weber. Ela defende que essas pessoas dentro da universidade vão conviver com indivíduos que, muitas vezes, não teriam contato com seus corpos. “Isso pode diminuir a violência, uma vez que é mais difícil ser preconceituoso quando se trata de um colega e não de alguém que está na rua.”

A professora diz que o critério mais certeiro para a seleção de alunos e professores deve ser a autoidentificação, pois só o indivíduo pode definir seu gênero. O ponto é polêmico: a complexidade de comprovar a transexualidade de uma pessoa é um dos argumentos mais usados para descredibilizar a reserva de vagas, pois essa dificuldade de identificação poderia abrir espaço para fraudes.

Neste caso, instituições que já possuem a reserva de vagas podem ser usadas como base. A UFABC, por exemplo, possui uma Comissão Especial para Pessoas Transgêneras (CEPT), que pode ser convocada a qualquer momento para atestar a conformidade de acesso às cotas trans – que também são acessadas por autoidentificação, o que poderia ser replicado na USP para evitar fraudes. 

Para ampliar o efeito da política pública, Weber sugere sua associação com o recorte socioeconômico. “As cotas trans devem estar associadas às cotas sociais, ou seja, uma pessoa trans precisa estar em vulnerabilidade financeira para ter direito, o que já diminui a possibilidade de fraude, pois há documentos que comprovam a renda de uma pessoa”, finaliza.