Neurodivergentes: “A Universidade espera que a gente se adapte ao padrão”

Estudantes com TDAH, autismo e dislexia relatam dificuldades com vestibular e aulas, além da falta de um programa apropriado na instituição

por Gabriela Lima

Foto: Erick Lins/JC

Amana Dultra está repetindo em Imunologia. Não é por falta de interesse, ela demonstra saber bastante sobre o assunto enquanto fala. O problema é que Amana não consegue sair de casa para fazer a prova. As luzes e os barulhos da sala de aula são demais, até mesmo o formato da prova não faz sentido para ela. 

Aos 30 anos, Amana foi diagnosticada com autismo. Os sintomas a acompanharam a vida inteira, mas ela viveu um grande período de masking – uma estratégia na qual autistas escondem seus traços de maneira consciente ou inconsciente. Baiana, Amana se mudou para São Paulo para fazer Nutrição na Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP). 

Amana faz parte de um pequeno grupo de pessoas neurodivergentes que estudam na USP – a Universidade não produz estatísticas sobre o tema. O termo “neurodivergente” veio da sociologia e ganhou mais reconhecimento pelas redes sociais, principalmente no Tiktok e Twitter.

Quando se fala de neurodiversidade, Táhcita Mizael, pós-doutoranda em psicologia pela University of South Australia, imagina uma curva de distribuição populacional em forma de sino. “Temos a população que está dentro da curva maior, que são as populações típicas com o desenvolvimento cerebral considerado normal. As pessoas neurodivergentes têm um desenvolvimento fora da curva, diferente da maioria”, explica. Incluem-se nessa categoria indivíduos com autismo, dislexia, Transtorno de Déficit de Atenção-Hiperatividade (TDAH), síndrome de Tourette e Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). 

Há uma visão estigmatizada de que essas pessoas não chegam ao ensino superior ou não são capazes de passar em um vestibular como ENEM e a Fuvest, os principais meios para entrar na USP. 

Carolina tem 18 anos, fez a Fuvest em 2021 e hoje cursa Jornalismo. Ela foi diagnosticada aos 14 anos com TDAH. “É muito complicado para mim fazer esse tipo de prova que dura muito tempo”. 

No vestibular, Carolina usou os três serviços oferecidos para candidatos disléxicos – 20% a mais de tempo extra para realizar a prova, uma sala separada e uma acompanhante que lia as questões para ela. “Talvez eu não estivesse estudando na USP agora, se não tivesse esse atendimento especial, até porque o meu TDAH não é um nível tão leve assim”. 

Gabriel Ferraz, estudante de Economia na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), também utilizou o tempo extra quando fez a Fuvest. “Essa condição é necessária, mas não é o suficiente”. O problema do vestibular, para Gabriel, está bem atrás, ainda no ensino médio. “Os profissionais de ensino médio não são bem preparados para ajudar alunos com essas dificuldades, porque as aulas são feitas para o aluno médio, então quem tá fora desse padrão tem que se conformar”.

Amana, do começo da matéria, relata: “Acho que no geral a prova é feita para ver se você tem paciência se você decorou que tá escrito até porque são 90 questões. Três minutos por questão, não tem como você desenvolver nada”, diz ela. “Elas [as provas] não são inclusivas, mas eu acho que elas não são inclusivas nem para pessoas neurotípicas”. 

Eles estão na USP

O fato é que, apesar da barreira do vestibular, os alunos neurodivergentes existem na USP. Não há dados sobre quantas pessoas com essas condições estudam na universidade. Procurados pelo JC, a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento – que, em teoria, cuida desses alunos – não se pronunciou até o momento da publicação da matéria sobre a existência de dados ou programas voltados para alunos com neurodivergência. 

“Você percebe que eles [a universidade] esperam que a gente se adapte ao padrão”, afirma Gabriel. Assim como Carolina, ele possui TDAH e dislexia. Dentro da faculdade, Gabriel diz que nunca procurou ajuda, porque ao longo da sua vida, ele desenvolveu técnicas próprias para ajudá-lo nas suas dificuldades. “Eu não consigo estudar em casa, tem muito estímulo no meu quarto. Quando chega uma prova, começo a estudar seis dias antes na biblioteca da faculdade”, conta.

Nos corredores da FEA, ele nota que a maioria dos cartazes falam sobre depressão e ansiedade, doenças comuns na população brasileira, mas poucos falam sobre deficiências intelectuais. 

Atualmente, a Faculdade de Direito é a única na USP que possui uma política de inclusão pedagógica para alunos diagnosticados com autismo – incluindo atendimento pedagógico, solicitação prévia para adaptações de atividades, tempo adicional e local reservado para realização das provas. Ela não alcança outros alunos neurodivergentes e o projeto não foi expandido para outras instituições da USP. Os estudantes como Gabriel precisam arrumar uma maneira de se encaixar no molde que a faculdade pede. 

Aos 20 anos, Amanda (que pediu para ter o sobrenome omitido) faz Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Seu diagnóstico veio desde a infância. Ela tem autismo moderado. No curso, ela relata uma grande dificuldade com a interpretação e a comunicação com os professores.  “Você tem que ir lá e falar [sobre o diagnóstico] com os professores e isso já coloca um pequeno desafio, porque é difícil e você não sabe qual é o conhecimento da pessoa”.

Amana tem muito problema com os formatos das provas. “É muito louco isso de como as pessoas memorizam os tópicos, respondem a uma prova e tirar uma nota que é considerada aceitável, enquanto eu consigo explicar uma série de coisas com uma compreensão além, mas não é no modelo daquela prova”.

A aluna de Nutrição entrou na faculdade no auge da pandemia e, por dois anos, teve aulas online. Para ela, foi mais fácil lidar com essa modalidade de ensino, porque via as aulas e depois lia os livros para fixar o conteúdo. No presencial, além da dificuldade em entender a didática dos professores, os estímulos sensoriais atrapalham bastante Amana.

Ela conta que gostaria que os professores lhe dessem abertura para fazer outras atividades como um seminário ou uma dissertação dos tópicos dados em aula. “Eu consigo mostrar para o professor que eu tenho conhecimento, mas não o que ele quer de mim na prova”.

Para ela, a universidade pode se adaptar aos estudantes autistas, mas a adequação precisaria abarcar os diferentes tipos de autismo. “Eu fiz simultaneamente uma graduação e um mestrado e as pessoas achavam absurdo, mas foi a coisa mais fácil que fiz na minha vida. Para mim, é muito mais difícil ir para a minha aula presencial na quarta-feira”.

A especialista vê a possibilidade de adaptar a universidade para receber alunos neurodivergentes. Ouvir os alunos é o primeiro passo para isso. “É preciso construir o conhecimento olhando para quem está sendo atingido e dar espaço para os alunos se auto declararem. E aí outras demandas vão ser levantadas”, explica Táhcita. Segundo ela, a USP parece ter condições de direcionar verba para as necessidades desses alunos, mas a questão não costuma ser uma prioridade das universidades.

Gabriel Tavares faz Publicidade e Propaganda na ECA. Ele tem síndrome de Tourette, uma condição que causa múltiplos tiques, motores ou vocais. Tavares conta que até procurou ajuda quando entrou na faculdade no começo do ano. “Fui no CAO (Comissão de Acolhimento e Orientação) para perguntar se eu poderia recorrer a eles caso houvesse alguma discriminação comigo, mas não tinha ninguém que tivesse conhecimento para me ajudar ali”, relata ele. Quando passou na USP, Tavares procurou outras pessoas com Tourette, mas não encontrou ninguém. “É um pouco solitário, né?”. 

Táhcita explica que as questões talvez acabem não sendo tão levantadas porque muitas vezes as pessoas com neurodivergência desconhecem sua condição. O diagnóstico tardio, seja por falta de médicos com conhecimento aprofundado, seja pela visão estereotipada de certas deficiências como o autismo atrasam o reconhecimento. Victor, de 27 anos, faz mestrado em Matemática no Instituto de Matemática e Estatística (IME) e descobriu há pouco tempo que era autista. “Eu sempre tive um problema corporal. As outras pessoas não entendiam minhas expressões e a fala também”, afirma. “Os professores notavam que eu era meio avoado nas aulas, mas achavam que era só o meu jeito.”

Nós por nós mesmos

As iniciativas para tornar o período na faculdade menos difícil ficam por conta dos alunos. Os estudantes autistas citados na matéria fazem parte do Coletivo Autista, grupo independente que reúne alunos com a condição. Amanda, que coordena as redes sociais do Coletivo, explica que eles têm um grupo no WhatsApp onde promovem conversas e se ajudam mutuamente.

Na página do Instagram, Amanda cita que muita gente procura ajuda para entender melhor o autismo. Foi o caso de alguns professores da FSP que pediram para se reunir com o Coletivo e entender como ajudar alunos neurodivergentes, mas os casos são isolados e não se estendem para toda a universidade.

Ainda que seja oferecido um serviço de psiquiatria e psicologia dentro do campus para todos os alunos e funcionários, Carolina relata dificuldades para marcar consulta. “É muito difícil marcar um psiquiatra pelo HU. Todas as vezes que eu tentei, nunca consegui”. Ela também critica as consultas de psicologia que duram apenas duas ou três sessões. “Isso não é suficiente para alguém que precisa de acompanhamento contínuo”, afirma. “A USP é só um reflexo um pouco mais elitizado, mas ainda assim um reflexo de como o Brasil enxerga e trata as pessoas neurodivergentes no âmbito educacional”, diz Carolina.