Último grande ato: doação de corpos favorece qualidade no ensino e pesquisa dos cursos de saúde

Apesar de novas tecnologias e modelos artificiais auxiliarem no estudo sobre o corpo humano, peças anatômicas reais continuam a ser o material mais relevante para o ensino, pesquisa e extensão

por Mateus Cerqueira e Rafael Canetti

Alunos do curso de Enfermagem da USP durante prova para disciplina de anatomia humana. Foto: Mateus Cerqueira/JC

Em uma sala com azulejos brancos, pisos acinzentados, com corpos sobre mesas enfileiradas e que cheira a glicerina, calouros do curso de Enfermagem da USP têm o primeiro contato com cadáveres humanos. É a famosa prova apelidada pelos cursos de saúde como “gincana”. 

No rosto dos estudantes, olhares curiosos ao manipular as peças anatômicas, mas acompanhado de uma fisionomia de tensão por conta do tempo de resposta de 40 segundos para cada pergunta referente ao material humano avaliado.

Ao término desse tempo, eles passam à mesa seguinte na qual se encontra outra peça, podendo ser um crânio, um cérebro dissecado, membros inferiores (coxas, pernas e pés), ou ainda um corpo humano completo.

Essa foi uma das dinâmicas de alunos e professores com o material humano doado no complexo do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP que o Jornal do Campus (JC) acompanhou de perto, para mostrar como as peças anatômicas são essenciais para o ensino nas universidades.

Corpo humano X Modelos artificiais

Estudante do 9° ano da Escola Professora Dulce Ferreira Boarin no Museu de Anatomia Humana Alfonso Bovero (MAH) do ICB-USP. Foto: Mateus Cerqueira/JC

“Existe muito dessa coisa do primeiro contato com os doadores que os alunos enfrentam, o que para algumas pessoas talvez não seja necessário já que temos modelos artificiais do corpo humano”, diz a Profa. Dra. Thelma Renata Parada Simão, pesquisadora sobre doação voluntária de corpos.

“No entanto, se você fosse fazer uma cirurgia, você se sentiria mais confortável com um médico que estudou somente com um modelo plástico do corpo humano, ou com um que se debruçou sobre um corpo real durante a graduação?”, questiona.

Thelma é uma defensora do uso do corpo humano para o ensino, pesquisa e projetos de extensão dentro das universidades, assim como ocorre na USP. Segundo ela, há a necessidade de garantir que todos os estudantes dos cursos de saúde, independentemente da faculdade, tenham contato com material humano verdadeiro para uma formação de qualidade.

“Com todas essas peças [corpos] preservadas em glicerina, os alunos de diferentes cursos, como biomedicina, medicina, enfermagem, odonto, conseguem ganhar elevado grau de conhecimento sobre anatomia humana”, aponta. 

“A tecnologia, seja com os modelos plásticos, tecidos humanos em 3D ou análises tridimensionais em tela são grandes aliadas nos estudos da anatomia, mas não substitutas do corpo humano que apresenta diferentes formatos e especificidades”, acrescenta.

Por que doar?

Estudantes do curso de Farmácia da USP durante a aula de Anatomia Humana no ICB
Estudantes do curso de Farmácia da USP durante aula de Anatomia Humana no ICB-USP. Foto: Rafael Canetti/JC

O professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), Luiz Fernando Burns, defende que a importância da doação de corpos se resume em garantir o aprimoramento dos estudos e pesquisas. “Isso porque o corpo humano está sob constante evolução, apresenta variações [anatômicas] de pessoa para pessoa e, do ponto de vista dos estudos patológicos, apresenta uma carga informacional valiosa”.

A doação de corpos é um estímulo aos estudantes e pesquisadores para aprofundar os estudos sobre os tecidos humanos, seja na anatomia cirúrgica, patológica ou em diversas outras áreas. Mas para isso, os especialistas alertam que é crucial informar às pessoas que a doação de corpos é uma prática necessária à ciência moderna, e que não há nada rudimentar ou humilhante no processo. 

“A doação do corpo é o último grande ato do paciente ou familiares que tomam essa decisão de contribuir de forma inquestionável para o desenvolvimento científico e treinamento dos futuros profissionais da saúde” 

Professor de Medicina da USP Luis Fernando Burns

“Entendemos que o processo de doação é uma prática altruísta que requer grande reflexão”, relembra Fernando, “é o último grande ato do paciente ou familiares que tomam essa decisão de contribuir de forma inquestionável para o desenvolvimento científico e treinamento dos futuros profissionais da saúde.” 

O processo

Apesar de pouco divulgada, a disposição do corpo para doação após a morte é um direito de qualquer cidadão, respaldado na lei de número 10.406 de 2002. No entanto, o professor Luis Fernando Tirapelli, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (FMRP-USP), alega que o processo de disposição para doação é assegurado desde que com objetivo científico, ou altruístico, e de forma gratuita de todo ou partes do corpo pelo interessado.

Estudante do 9° ano da Escola Professora Dulce Ferreira Boarin no Museu de Anatomia Humana Alfonso Bovero (MAH) do ICB-USP. Foto: Mateus Cerqueira/JC

“Atendendo esses quesitos e na observância da necessidade, a instituição dará andamento ao processo de doação”, diz Tirapeli. Entretanto, é válido ressaltar que se um dos familiares barrar a doação, o processo pode ser interrompido. Não é à toa que esse interesse deve ser informado e documentado pelo doador.

O caminho mais seguro a seguir, complementa ele, é primeiramente procurar o setor de anatomia ou o programa de doação de corpos da instituição para qual se deseja doar, em seguida, emitir o termo de doação de corpo (pessoal e/ou representante legal) e reconhecer em cartório.

Por parte das instituições, deve ser assegurado o transporte, infraestrutura, armazenamento e demais cuidados com o corpo, dada a complexidade do processo. “Devemos atender às orientações das autoridades sobre a finalidade prática do cadáver e sua condição de conservação”, reforça o professor.

No geral, os espaços que cumprem as necessidades de regulamentação e fiscalização são instituições de ensino, hospitais e centros de pesquisa. 

Na USP existem quatro programas independentes de doação de corpos: no Centro de Medicina Legal (Cemel), atrelado à FMRP-USP de Ribeirão Preto, na Faculdade de Odontologia, em Bauru, na FMUSP, em São Paulo, e no ICB, também na capital paulista, mas atualmente suspenso.

Tabus X Ciência

Estudantes do 9° ano da Escola Professora Dulce Ferreira Boarin no Museu de Anatomia Humana Alfonso Bovero (MAH) do ICB-USP durante dinâmica com ossos de galinha. Foto: Rafael Canetti/JC

O professor da FMUSP Vitor Ribeiro Paes diz que os museus de anatomia cumprem importante papel na quebra de preconceitos sobre a doação de corpos ao naturalizar o próprio corpo. 

“Antes de tudo devemos trabalhar com a frente ‘informação’, dizendo às pessoas o porquê e para que serve a doação de corpos”, aponta Ribeiro. “O segundo passo, é reforçar à população no geral que os corpos serão tratados com a mesma dignidade humana de quando as pessoas estavam vivas, desmistificando preconceitos”, conclui.

Na USP, existem dois museus de anatomia: Alfonso Bovero, no campus Butantã, atrelado aos complexos do ICB, e o museu da FMRP da USP, no campus de Ribeirão Preto.