Artes visuais, a nova vítima

11 oferecimentos de disciplinas cancelados; falta de professores também afeta outras graduações e solução pode levar anos

Por Elaine Alves, Felipe Velames e Guilherme Castro

*O texto foi escrito antes da greve geral da USP em outubro, por isso, algumas informações podem estar desatualizadas

Manifestação do dia 09 de agosto exigiu contratação de professores. Foto: Guilherme Castro/JC

Foi um choque. No dia 31 de julho, uma semana antes do início do 2° semestre letivo de 2023, os alunos do curso de Artes Visuais da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP descobriram que 11 disciplinas da sua grade curricular haviam sido canceladas por falta de docentes. 

Isso aconteceu após a Reitoria negar a prorrogação dos contratos de três professores temporários, decretando o fim do vínculo estabelecido no 1° semestre com esses docentes. A partir de janeiro de 2023, o órgão passou a aderir às diretrizes estabelecidas na Lei Complementar Estadual nº 1.361, datada de 21 de outubro de 2021. Agora, a contratação de um docente temporário só é possível em situações específicas: quando há um processo seletivo em andamento para contratar um professor efetivo, durante licenças médicas prolongadas, licenças maternidade ou paternidade, ou para substituir um docente em pós-doutoramento no exterior com duração superior a seis meses.

Outras 11 disciplinas do curso também estão desassistidas para o primeiro semestre de 2024, de acordo com dossiê coordenado pela professora Silvia Laurentiz, chefe do Departamento de Artes Plásticas (CAP). 

Foi nesse contexto que estudantes de Artes Visuais organizaram um ato, no dia 9 de agosto, durante a reunião do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da ECA. Eles reivindicavam a contratação de novos professores e denunciavam o desmantelamento dos cursos de Artes. O CTA é o órgão responsável pela deliberação sobre afastamento e dispensa de servidores técnico-administrativos e a criação de cargos e funções docentes.

Durante a manifestação, os alunos apresentaram uma carta pública em defesa do curso, elaborada por docentes, discentes e servidores técnico-administrativos do CAP. O documento apresenta dados que enfatizam a importância do curso no contexto nacional. A graduação em Artes Visuais foi a 12º mais procurada no vestibular Fuvest 2023, com 30,8 candidatos por vaga.

Em 11 de agosto, o CTA, em publicação no site da ECA, manifestou apoio à carta pública. Entretanto, Níke Krepischi, aluna no 8º semestre do curso de Artes Visuais afirma que o CAP ainda está no aguardo de uma devolutiva concreta da Diretoria quanto ao futuro do curso de Artes Visuais. “E mesmo se conseguirmos professores, outros departamentos e institutos vão continuar precisando. Por isso, a ideia das próximas mobilizações é não deixar o movimento morrer”, comenta. 

Medidas emergenciais

A falta de contratação de docentes não é algo exclusivo do CAP, conforme revela a situação dos cursos de Obstetrícia, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), e Letras-Japonês, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, casos noticiados pelo JC na Edição 534, em junho de 2023. Outra vítima dessa situação é a Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Um informe dos Representantes Discentes declarou que a falta de docentes poderia afetar a disponibilidade de disciplinas obrigatórias. De acordo com dados do Portal de Transparência da USP, entre setembro de 2022 e julho de 2023 a FEUSP perdeu 25 docentes no total.

Para evitar o atraso na formação dos alunos, a Comissão de Graduação diminuiu a quantidade de disciplinas optativas disponíveis para a graduação de Pedagogia da FEUSP neste semestre. Segundo Jaqueline Ortiz, estudante do 2ª semestre do curso, para que não houvesse o cancelamento de matérias obrigatórias, os professores que lecionavam algumas disciplinas optativas foram transferidos para as obrigatórias. “A USP, de modo geral, está passando por um sofrimento lento e contínuo por falta de professores”, aponta a aluna.

Segundo Pablo Fernando Gasparini, chefe do Departamento de Letras Modernas da FFLCH, o remanejamento de professores “leva a uma sobrecarga do trabalho dos docentes que afeta em grande parte suas outras obrigações, especialmente pesquisa e orientação de projetos, itens que costumam ser os mais cobrados pela Capes na hora de avaliar os programas de pós.”

Mas, para a professora Silvia Laurentiz, a sobrecarga gerada não é o que mais a preocupa no curso de Artes Visuais. “Temos gravura, pintura, escultura, multimídia, fotografia, desenho e História da Arte. Como vou remanejar a professora de História da Arte Contemporânea para oferecer uma disciplina de fotografia digital?”, indaga.

Um problema histórico

Além da perda de docentes, a USP também passou por mudanças no número de estudantes na graduação. Entre 1995 e 2022, houve um aumento de 33.479 para 60.120 graduandos, enquanto a quantidade de professores passou de 5.056 para 5.151. Ou seja, o aumento de 79,6% no quadro discente ao longo dos quase 30 anos não foi acompanhado de forma proporcional pelo número de docentes, que cresceu apenas 1,9% no mesmo período.

Mas por que ocorre esse congelamento na contratação de novos docentes? Michele Schultz Ramos, presidente da Associação de Docentes da USP (Adusp), acredita que a falta de contratações pode ser explicada por uma intenção da reitoria em adotar o ensino à distância (EaD).

“O que nos preocupa aqui na Adusp é o apelo da reitoria pelas videoaulas, porque isso interfere na qualidade do ensino de cursos que foram idealizados de forma presencial”, afirma a docente, que destaca o caso da Medicina da USP de Bauru, que recorreu às videoaulas por falta de docentes ao final de 2022. 

Questionada, a Assessoria de Imprensa da USP negou a interpretação da docente e disse que a substituição do presencial pelo EaD não traria economia.

Burocracia e lentidão

Como mostram dados do Portal de Transparência da USP, de 2014 até 2023, houve um déficit de 1.039 docentes efetivos na universidade. Para solucionar essa questão, o reitor Carlos Carlotti prometeu, em recentes entrevistas, conceder 876 vagas para repor esses docentes, que estão sendo distribuídas para todas as Unidades. Esse processo foi dividido em três fases até 2025. Desse total, 27 foram destinadas à ECA, aproximadamente 3% das vagas. Na FFLCH, outro instituto que também é constantemente afetado pela falta de docentes, conforme noticiado pelo JC em edições passadas, houve uma antecipação de 35 vagas para claros docentes.

Em entrevista ao Jornal do Campus, o professor Claudemir Viana, presidente da Comissão de Graduação da ECA e presidente da Comissão de Claros Docentes (CCD) da ECA, contou que a regra para distribuição de vagas para toda a USP corresponde à reposição de até 80% do que cada departamento tinha em 2014. O docente aponta que, mesmo após a conclusão dos processos de contratações em 2025, faltarão os 20% de docentes em relação a 2014 e aqueles que a Universidade perdeu de 2022 em diante. 

A lentidão desse processo de contratação está ligada não somente a questões administrativas, como também burocráticas. Um processo que demora meses e até mesmo anos se inicia com a abertura de uma vaga para professor da USP, envolvendo tanto a administração interna quanto a do restante do Estado de São Paulo. Desde a abertura de concurso, a realização de exames médicos, aprovação dos trâmites em diferentes instâncias e todas as partes essenciais para admissão de um docente, qualquer falha administrativa pode atrasar ou inviabilizar o processo. 

Perspectivas para o futuro

No dia 21 de agosto, foi anunciada a criação de uma comissão interna para tratar da distribuição de novas vagas para docentes entre os Departamentos da ECA. Dezoito contratações foram adiantadas, conforme decisão da Reitoria da USP.

Para Claudemir Viana, a falta de professores é sentida de maneira desigual entre os institutos. Em um país como o Brasil, cujas bases econômicas dirigem-se à agroexportação, o professor sugere que disciplinas que servem de apoio a esse setor da economia são beneficiadas pelas elites, enquanto outras ciências são negligenciadas.

“Essa é uma adversidade que se encaixa num quadro geral de desvalorização das Ciências Humanas e da Educação, um problema que está ligado à estrutura da sociedade brasileira”, completa o docente.