Adesão ao Provão pode tornar USP mais “paulista”

Nova modalidade de ingresso tira vagas de acesso via Enem. “Apenas 16% dos alunos nas escolas públicas de SP fazem o exame nacional”, justifica PrG

Por Caroline Santana, Emanuely Benjamim e Marília Monitchele

A partir de 2024, a USP adotará uma nova forma de ingresso voltada aos alunos de escolas públicas de São Paulo: o Provão Paulista. Com a mudança, houve a redistribuição da oferta de vagas entre as modalidades já existentes — Fuvest e Enem-USP. Por determinação do Conselho Universitário, 70% das vagas devem ser preenchidas pela Fuvest, restando outros 30% para formas de seleção alternativas. De 2023 para 2024, o número de vagas oferecidas para alunos que fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio caiu quase pela metade, saindo de 2.917 para 1.500 vagas (veja essa e outras alterações nos gráficos). As posições cortadas foram transferidas para o Provão Paulista.

De acordo com a Pró-Reitoria de Graduação (PRG), a nova forma de ingresso é uma tentativa de trazer mais alunos da rede pública estadual para os cursos da USP. “O Provão foi motivado por um dado bastante preocupante”, diz Aluisio Augusto Cotrim Segurado, pró-reitor de Graduação. “Constatou-se que, dos 400 mil alunos do terceiro ano do ensino médio público do estado, somente 16% fizeram a prova do Enem”. 

A partir do Provão Paulista, eles poderão entrar em universidades estaduais, como a USP, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e as Faculdades de Tecnologia de São Paulo (Fatecs).

Para os alunos que estão no 1° ano do ensino médio, a prova será aplicada de forma seriada em 2023, 2024 e 2025. Já para os que estão cursando o último ano, a prova funcionará de forma semelhante ao Enem e poderá valer para o ingresso nas universidades em 2024. 

Segundo a Pró-reitoria de graduação, novos modelos de ingresso, como o Provão e o Enem-USP, são uma tentativa de variar o perfil dos estudantes. “A ideia é que tenhamos maior diversidade financeira, étnico-racial e regional”, sintetiza Marcos Neira, pró-reitor adjunto de graduação.

O Enem retorna com uma queda grande do número de inscritos, em função da pandemia e seus impactos na qualidade do ensino médio

Amélia Artes, Fundação Carlos Chagas

A definição das formas de seleção, com a prioridade ao favorecimento da Fuvest e do Provão Paulista em detrimento do Enem, também poderá ter efeitos futuros no que diz respeito a diversidade regional nos campi da USP. Trata-se de duas formas de entrada que são aplicadas apenas no estado de São Paulo, enquanto o Enem é uma avaliação comum a todo o território nacional, sendo uma alternativa tradicionalmente mais barata, capilarizada e conhecida pelos alunos. 

Para Amélia Artes, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas e doutora em educação, essa é justamente uma das vantagens do Enem, que foi criado para permitir que o aluno não precisasse se deslocar para diversos estados para pleitear uma vaga no ensino superior. “A partir de um único exame o aluno consegue acessar um conjunto de possibilidades, não importa a distância”, sintetiza. 


Brenda Fernandes diz que nunca teria entrado na USP se não fosse pelo Enem. A aluna utilizou sua nota no Exame Nacional do Ensino Médio de 2020 para concorrer a uma vaga em jornalismo. O plano inicial era cursar medicina, mas no fim, ela acabou optando por uma carreira na comunicação. Natural do Espírito Santo, Brenda explica que não poderia vir para São Paulo tentar uma prova como a Fuvest sem ter a certeza de que passaria no curso escolhido. 

Atualmente, a USP oferece 11.147 vagas para 183 cursos de graduação. Além das disponibilizadas pela Fuvest, que teve mais de 114 mil inscritos para a última edição, há a reserva de outras 3.000 vagas, divididas entre o Enem-USP e o Provão Paulista. O primeiro foi aprovado pelo Conselho Universitário em novembro de 2022 como uma forma de ingresso que substitui o Sistema de Seleção Unificada (SiSU). Com a mudança, os alunos que entram na universidade utilizando a nota do enem passaram a seguir o mesmo calendário de matrícula dos ingressantes via Fuvest e a USP tem controle sob a lista de espera. 

Esta foi a alternativa escolhida por Laura Pastene, estudante de Relações Públicas. “Eu tinha perdido o prazo de isenção de taxa da Fuvest e achava o valor muito alto. Era algo que eu não podia pagar na época”, explica. Em 2023, ano de ingresso de Laura, foram oferecidas 18 vagas em RP pelo Enem, nove em cada turno. “Fiquei desesperada porque a nota de corte da primeira chamada foi 751 e minha média era 750. Fiquei na lista de espera e acabei entrando”, lembra a estudante. 

Neste ano, a disputa tende a ser ainda mais acirrada. O curso conta com 7 vagas via Enem, apenas 2 no noturno, período escolhido por Laura no ano anterior. A título de comparação, a Fuvest disponibilizará 50 vagas para Relações Públicas, que serão distribuídas entre matutino e noturno. 

Gráfico ilustra a mudança com a redistribuição das vagas entre a Fuvest, o Enem-USP e o Provão Paulista. Gráfico: Gabriel Eid/JC

O longo caminho para a diversidade

Embora tentativas de tornar o perfil dos estudantes da USP mais plural tenham surgido nos últimos anos, a universidade tem um histórico de atrasos na adoção de formas de ingresso e permanência que resultem em maior diversidade discente. Apenas em 2016, por exemplo, os primeiros candidatos selecionados pelo Enem passaram a integrar os cursos da USP. Um atraso de seis anos, quando comparado à maioria das universidades brasileiras, que começaram a adotar o SiSU em 2009. 

Foi somente em 2021, mais de 80 anos depois de sua fundação, que os alunos de escola pública se tornaram maioria no corpo discente. Isso aconteceu quase uma década depois da implementação da Lei de Cotas, que a USP foi uma das últimas do Brasil a adotar, amargando um delay de quatro anos em relação às outras universidades públicas. “Naquele tempo se discutia se a implementação das cotas não iria piorar a qualidade dos cursos”, relembra Amélia. 

No vestibular de 2023, pretos e pardos representaram 27% dos aprovados, longe da parcela de mais de 56% da população que se enquadra nessas categorias. Nas Universidades Federais, pretos, pardos e indígenas já somam 52% do alunado.

Se para pretos e pardos os índices estão aquém do ideal, no que se refere aos indígenas, eles são praticamente inexistentes. “Nós temos hoje o mesmo percentual de indígenas de antes de qualquer política de inclusão”, afirma Segurado. De acordo com o Anuário Estatístico USP 2023, apenas 66 dos alunos da graduação pertencem ao grupo, enquanto na pós-graduação o número sobe para 78 e, no pós-doutorado, cai para 3. 

A alternativa encontrada por instituições, como a Unicamp e a Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), para diminuir desigualdades semelhantes, foi a adoção do vestibular indígena, em que as questões abordam processos e conhecimentos compartilhados nas comunidades tradicionais. 

Na USP, a implementação de um sistema semelhante já foi aventada, mas sem resultados concretos. “Será discutido, mas com o cuidado necessário para garantir que não seja simplesmente um mecanismo de reserva de vagas que pode ser ineficiente, ou que não garanta a permanência dos alunos”, pondera o pró-reitor.

A ideia é que tenhamos maior diversidade financeira, étnico-racial e regional

Marcos Neira, Pró-Reitor Adjunto de Graduação

Nas outras universidades públicas no estado, o sistema é visto como um avanço, mas ainda demanda aprimoramentos. Membros do coletivo de estudantes indígenas da Unicamp sinalizam para dificuldades de acesso aos locais de prova, por exemplo, que priorizam as capitais em detrimento do interior, onde vivem a maior parte dos povos indígenas.

Há outros problemas, como oferta de vagas e iniciativas de acolhimento e permanência. “Muitos cursos não queriam abrir vagas para o vestibular indígena mesmo depois de se tornar obrigatório”, relata Jeremias Akroá Gamella, estudante de arquitetura e membro da comunidade Taquaritiua (MA). “O bacharel em música, por exemplo, não fez isso até hoje”.  Para Diwarian Pego, do povo tupiniquim, a falta de acolhimento por parte da universidade e seus alunos, motivada pelo racismo, é obstáculo para a permanência desses ingressantes. 

Amélia aponta que as instituições precisam se adaptar às diversas culturas e aos novos públicos que estão ingressando no ensino superior. Seja com formas de ingresso mais inclusivas, auxílio na permanência estudantil ou na própria discussão sobre a bibliografia dos cursos. “Para que a gente democratize a universidade pública, devemos manter as políticas focalizadas. Precisamos que as universidades acolham e deem condições de pertencimento aos diferentes grupos”, sintetiza. “A chave para a educação é enfrentar a desigualdade”.