Greve expõe fraturas entre correntes do movimento estudantil

Composto por coletivos de esquerda, DCE recebe críticas de ‘independentes’ que ocuparam prédio da Administração Central

Por Ana Mércia Brandão, Guilherme Valle e Ricardo Thomé

Ilustração de uma mesa de assembleia do movimento estudantil [Ilustrações: JP Bossola]

No dia 19 de setembro, os estudantes da USP votaram por entrar em uma greve geral que viria a durar mais de um mês. A ação colocou em evidência um ator que sempre esteve ativo na Universidade, mas cujas nuances permanecem desconhecidas por boa parte dos universitários: o movimento estudantil (ME).

O nome “movimento estudantil” indica uma unidade que, na prática, não se sustenta. Existem divergências entre os próprios alunos, que encontram identificação nos coletivos políticos presentes na USP, cada um com um posicionamento diferente — mesmo que a maioria esteja no mesmo campo, o da esquerda.

Allan Kenzo, aluno de Geografia que milita há cinco anos no coletivo Juntos!, comenta, em entrevista ao JC, que essa divisão dentro do ME foi o que mais o decepcionou ao entrar no movimento. “Eu sabia que existiam divergências, mas achava que poderíamos ter graus de síntese maiores do que realmente temos”, resume.

A gestão que lidera o DCE desde 2022 parte de uma tentativa de superar essas discordâncias. Movimento Correnteza, originado no PCR (Partido Comunista Revolucionário) e também relacionado à UP (Unidade Popular), UJC (União da Juventude Comunista, com berço no Partido Comunista Brasileiro) e Juntos!, uma das correntes  mais esquerdistas do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), dividem a composição da chapa. 

Outra motivação foi superar a aliança PT-PC do B, dominante na União Nacional dos Estudantes (UNE). O entendimento é que as conquistas dos estudantes não viriam por meio de acordos com a Reitoria ou de conversas de gabinete, mas sim através da mobilização estudantil. “O campo democrático popular entendia a entidade do DCE mais como uma espécie de zeladoria dos estudantes da USP ou quase como uma ponte entre a Reitoria e os estudantes, e para nós não é isso”, afirma.

O outro lado rebate. Para Giulia Castro, estudante de Ciências Atuariais, vice-presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo (UEE-SP) e membro do CA da  Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), a composição atual do DCE é uma “anomalia”. “Os movimentos se unem por serem oposição ao campo democrático popular, mas não fazem construções em conjunto”, critica.

O que Giulia percebe como anomalia vem da diferença ideológica entre os três grupos. Kenzo dá sua versão: “O Juntos! segue uma linha teórica voltada para o trotskismo. UJC e Correnteza seguem uma vertente que eles chamam de marxismo-leninismo, mas que nós chamamos de stalinismo”. Para o Juntos!, os demais movimentos são pouco críticos ao que foi o regime de Josef Stalin na União Soviética e ao que são os governos ditos socialistas na atualidade. “Isso se reflete na forma de organização: o Juntos! valoriza o debate interno, enquanto em alguns outros coletivos as decisões vêm da direção e são socializadas com o resto, o que é uma distorção do centralismo democrático”, completa.

Sobre os movimentos de direita, Giulia afirma que o Poli Liberty, da Escola Politécnica, é o único, apesar de não atuar muito no movimento estudantil. “Eu nunca vi a direita concorrer a uma chapa no DCE, por exemplo”, conta. Ela cita, também, coletivos menores e localizados, que são considerados de direita pelo movimento estudantil, mas cujos membros não se veem como tal. “Temos como exemplo o Revoada na Poli, que é o Grêmio da Poli, ou o Construção, na São Francisco. Eles vieram de heranças da direita, mas hoje em dia, não se entendem mais assim”, completa.

Com quanta unidade se faz uma greve

O destaque que o ME ganhou com a greve não foi de todo positivo. Ao fim da mobilização, uma “acusação” pairava no ar: a de que o DCE estaria ativamente desmobilizando os estudantes e incitando o fim da greve. Essa crença, que Kenzo classifica como uma “narrativa criada por setores do ME”, fez com que um grupo de estudantes autointitulado “independente” agisse por conta própria e ocupasse o prédio da Administração Central da USP em defesa da não-represália aos grevistas. Ao JC, sob pedido de anonimato, um porta-voz expressou a insatisfação do grupo em relação à atuação do DCE.

“Assembleias cansativas, falta de comunicação com os estudantes, propostas fracas de calendário e inexistência de mobilização para os atos e protestos. Essa postura da direção estudantil levou ao enfraquecimento da greve e ao fechamento da negociação com a Reitoria, o que fez com que os estudantes saíssem da greve sem a garantia de não-represália política”, afirmou.

Para Giulia, o problema começou antes mesmo da greve, pelo fato de o DCE não ter construído um movimento anterior à paralisação. Kenzo admite que não houve uma grande preparação, mas defende o papel dos coletivos, que passaram “o ano inteiro mobilizando e falando com as pessoas”.

Sobre as acusações de desmobilização, o militante do Juntos! defende: “A nossa política de encerrar a greve era menos por achar que a proposta da Reitoria era ótima, e mais porque já estávamos vendo um desgaste do movimento. Como extrair mais da Reitoria se não conseguimos mobilizar mais?”

Olhando para trás, o estudante de Geografia acredita que a mobilização foi importante para “existir um avanço de consciência nos estudantes de que é possível fazer uma greve e que traz resultado”. “É o processo que inspira outros processos”, completa.

Para ele, esse é o impacto do movimento estudantil, o qual caracteriza como “um espaço importante de formação”. “É uma forma de também trazer uma contribuição para a política em geral”, conclui.