Por Danilo Queiroz e Laura Pereira Lima
“Calor, hein?”. A clássica conversa de elevador repentinamente toma outras proporções quando Vander dos Santos, morador do Crusp, revela as condições climáticas da moradia estudantil: cubículos com janelas pequenas, com pouca ou nenhuma ventilação. “O pessoal molha os travesseiros com água, para refrescar um pouco”, conta. A um hemisfério de distância do Natal cinematográfico, longe dos bonecos de neve, cachecóis e lareiras acesas, a época natalina na moradia estudantil é marcada por um calor sufocante. — e travesseiros encharcados.
Vander tem o costume de passar o Natal no Crusp, porque mora longe de São Paulo — ou melhor, do Brasil. Nascido em São Tomé e Príncipe, ilha lusófona na África, o mestrando precisaria gastar cerca de 15 mil reais para comemorar a data com a família. “Prefiro mandar esse dinheiro para eles, que vai ajudar bastante, e ficar aqui”. A ajuda financeira transferida para a família provém da bolsa de pesquisa recebida mensalmente por Vander durante os meses de pesquisa em Engenharia de Produção que desenvolve pela Poli.
Assim como Vander, outros moradores que moram em regiões mais distantes também não conseguem voltar para casa no fim do ano e passam a comemoração tipicamente familiar com seus vizinhos, em uma ceia farta e memorável. A data, então, não é comemorada sozinha. “Tem gente que pode voltar para casa e escolhe ficar, só para participar da ceia”, conta Vander, com orgulho, acrescentando que os causos e anedotas da ceia são repercutidos durante o ano todo.
A reunião calorosa começa tradicionalmente às 17h do dia 24 — e dura até o dia 26. Durante esse período, o bandejão não abre, e as refeições ficam sob responsabilidade dos organizadores da ceia, servida na sala de vidro localizada no térreo do bloco A1 ou no espaço da Associação dos Moradores do Crusp (Amorcrusp), no térreo do bloco F. Os espaços são enfeitados com as mais variadas cores de pisca-pisca, sobretudo nas laterais e nas vigas da porta principal onde a celebração acontece. Bexigas vermelhas e verdes servem como uma espécie de moldura para as árvores de Natal e papais noéis confeccionados em papel emborrachado.
Um outro ritual clássico, a troca de presentes, é ansiosamente aguardada pelos participantes. Porém, com um novo significado, . O caráter mercadológico e consumista cede vez para um momento afetivo, – sobretudo para aqueles que não conseguem financiar um presente. Para contornar isso algumas dessas barreiras financeiras, a organização dá presentes aos participantes. Nem todo ano é possível, mas quando conseguem o financiamento necessário – vindo de doações –, a lista de presentes é totalmente direcionada para coisas utilizadas no dia a dia dos moradores, como liquidificador e torradeira. “Já demos até computador — um computador baratinho — para um morador que precisava”, conta um dos organizadores do evento, que preferiu manter-se anônimo.
O ponto alto do evento talvez seja a gastronomia. Para nutrir o expressivo número de participantes — os organizadores do ano passado estimam que tenha sido algo em torno de 250 pessoas —, é necessário que se providencie muita comida. E só existe na USP um lugar com panelas suficientemente grandes para cozinhar tantos pratos: o bandejão. As panelas do bandejão, emprestadas pela Universidade, se deslocam até as cozinhas coletivas do Crusp, onde cada prato é preparado por uma dupla de moradores. Os ingredientes são doados pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) e a ceia também recebe auxílio da Associação de Moradores, que financia o evento e empresta caixas de som.
Além de reunir um alfabeto de blocos, a ceia também forma seu próprio mapa-mundi. Para Vander, a melhor parte da celebração é o intercâmbio cultural que ela proporciona, já que quem passa o Natal na Universidade geralmente mora em lugares mais distantes. “Você acaba conhecendo pessoas e pratos de diversas culturas”, conta o morador, acrescentando que as ceias têm pratos da Bahia, Pernambuco e até mesmo de outros países da América Latina, como Colômbia, Venezuela e Chile. “São pratos que eu nunca comi antes”.
As ceias de Natal repletas de pessoas não são uma novidade para Vander, que, em São Tomé e Princípe, frequentava Natais populosos. “A gente tenta juntar o máximo de família em uma única casa”, conta. Nas celebrações do país, os convidados só começam a comer após a pessoa mais velha da família — geralmente uma mulher — dar uma colherada de comida na boca de cada um dos membros. “Fazemos fila para receber a primeira garfada”. As comidas típicas como a cachupa — uma espécie de feijoada com milho — dominam a refeição. Vander sente saudades das comidas, difíceis de reproduzir no Brasil por causa da falta de temperos.
No Natal, é comum que a saudade se transforme em outro sentimento marcado pela tristeza, solidão e apatia. “Eu convido um, convido outro para participar da ceia. O convite é justamente para dizer: não é só comida, é troca. A gente não sabe o que pode acontecer com o morador que opta por estar isolado no apartamento, a gente sabe que casos como esse acontecem por aqui”, conta ele entristecido ao lembrar de situações em que o Natal parecia mais com outra data do calendário, o dois de novembro. Mas em 2023, na ceia do bloco A1 ou F, o ano vai nascer outra vez.