Conservadorismo “de berço” segue vivo na USP de hoje, dizem historiadores

Para especialistas que pesquisaram o contexto de criação da Universidade de São Paulo, a instituição continua elitista

Por Gabriel Silveira, Ingrid Gonzaga e Maria Fernanda Barros

Fotomontagem: Tulio Gonzaga/Imagens: Arquivo Nacional; Revista Ilustração Brasileira; Acervo USP; CPDOC FGV; Acervo Estadão

No dia 9 de julho de 1932, estourava o movimento conhecido como Revolução Constitucionalista. De um lado, as elites paulistas insatisfeitas com aqueles que estavam no poder. Do outro, Getúlio Vargas e o Governo Federal lutando contra os revoltosos. A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco se transformou em um local de alistamento militar e, três dias depois, começavam as operações nas fronteira de São Paulo. O estado se transformou em um campo de batalhas. Entre conflitos na capital e no interior, estimativas apontam mais de 2.200 mortes.

A ação fracassou, mas os paulistas conquistaram suas demandas. Vargas entendia que não podia governar o País sem a validação política de São Paulo, e por isso, em 16 de agosto de 1933, indicou para o cargo de interventor federal no estado Armando de Salles Oliveira, um dos líderes da Revolta de 1932. Armando, porém, impôs condições antes de aceitar o cargo. Dentre elas, a anistia para dois colegas: Júlio de Mesquita Filho e Fernando de Azevedo. Dois anos depois, em 1934, os três estariam juntos em um marco fundamental para o estado: Armando, Júlio e Fernando eram três dos fundadores da Universidade de São Paulo.

Fruto da relação entre figuras simbólicas da elite intelectual nacional, a USP sofreu grandes influências desse contexto. Este ano, ela completa o seu 90º aniversário: muito tempo se passou e a Universidade se transformou em diversos aspectos. Mas, de acordo com dois historiadores que conhecem a fundo o contexto de criação da universidade, a melhor instituição de Ensino Superior da América Latina ainda vive marcas desse passado elitista e conservador.

Gênese da USP

Após se estabelecer no cargo de interventor, Armando de Salles Oliveira deu início a projetos políticos e econômicos voltados à formação de uma alta cultura paulista. O imperativo de retomar o prestígio das elites de São Paulo tornou inevitável o nascimento da USP. Armando, com apoio de Júlio de Mesquita Filho, herdeiro do jornal O Estado de S. Paulo, e do educador e sociólogo Fernando de Azevedo, assinou o decreto de fundação da Universidade de São Paulo no dia 25 de janeiro de 1934.

A USP surge com um objetivo mais complexo do que consagrar a formação de profissionais. Segundo Marcus Vinicius da Costa, mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o propósito maior era formar lideranças e pesquisadores com ampla influência intelectual, de modo a inserir novamente São Paulo no protagonismo do jogo político do Brasil. A estratégia de Salles, Mesquita e Azevedo para alcançar essa aspiração foi inaugurar a Universidade com a criação da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências.

Para Bruno César Nascimento, doutor em história pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) que estudou as perspectivas educacionais brasileiras a partir da década de 1930, a sede de poder e status paulista foi saciada. Na análise do historiador, a USP de fato consolidou uma elite intelectual e política no país. Mas, em decorrência dessa origem que ele classifica com enviesada, houve consequências à estrutura da Universidade.

“Foi o grupo do Estadão que estabeleceu os parâmetros necessários para que a USP fosse criada. A movimentação dos atores que fizeram as visitas ao exterior no interesse de trazer possíveis professores ao Brasil, conhecido como as missões estrangeiras, é uma iniciativa do grupo de Júlio de Mesquita Filho. Eles foram os responsáveis por esse pensamento ao mesmo tempo inovador, mas bem conservador do ponto de vista prático na Universidade”, diz Bruno.

O passado não passou

Na década de 1930, o racismo científico estava na “ordem do dia”. A título de exemplo, Bruno cita que Renato Kehl, eugenista brasileiro, ainda era uma grande autoridade e fazia diversos congressos pelo País. Como consequência desse contexto, a criação da USP herdou pensamentos similares no âmbito das produções acadêmicas e da formação do corpo docente e discente.

Marcus acredita que a maneira como a USP se estruturou ecoa até os dias atuais. “A sua formação está na essência da Universidade. Por mais que a USP tenha sofrido muitas transformações ao longo desses 90 anos, existe ainda um elitismo muito forte, a começar pelo vestibular ou pela forma como ela ainda é administrada. Não existe uma preocupação com a democratização do ensino”, completa o historiador.

Alguns fatos gritam: a USP foi, por exemplo, a última das grandes instituições de ensino superior a aderir às cotas raciais. A postura inerte se repete com o debate atual acerca das cotas trans, já adotadas em algumas universidades federais como a UFBA, UFSC e, no Sudeste, a UFABC.

A construção da memória histórica uspiana também revela esse classismo. Para o pesquisador da FFLCH, esse teor está explícito nos discursos da administração da Universidade. “Os reitores sempre têm um discurso memorialista falando que as elites paulistas sempre estiveram interessadas na educação. A história institucional da USP é romantizada”, explica.

Ainda segundo Marcus, as escassas conquistas que caminham no sentido da ampliação do acesso à Universidade foram conseguidas por meio da luta de pessoas que não compõem a elite universitária. “Existe um esforço popular para democratizar a partir da pressão dos estudantes, que foi vitoriosa ao concretizar as cotas. Mas a democratização da USP não para aí, acredito que principalmente o âmbito da permanência estudantil é agora o maior desafio”.

Entre lutas pela democratização do ensino e oposições conservadoras dentro da Universidade, a USP completa 90 anos. “Apesar de tudo, existem movimentos populares, associações estudantis, e eu acho que é isso que torna a USP uma das melhores instituições do país.”, conclui Marcus.