Alvo de polêmicas, bancas contra fraudes raciais recebem apoio de coletivos e da USP

Entidades defendem que eventuais falhas das  comissões de heteroidentificação não devem servir para atacar as cotas, mas para aprimorá-las

por Julia Ayumi Takeashi e Tulio Gonzaga

Ter a autodeclaração racial negada pela universidade para a qual você se candidatou não é o melhor cenário para se enfrentar logo no início da vida universitária. É o desafio que coube a Caique Fonseca, que foi aprovado na primeira chamada para o curso de Engenharia de Produção pela Fuvest, por meio da política de cotas raciais. No entanto, sua autodeclaração foi refutada pela banca de heteroidentificação da USP logo no primeiro dia de aula. 

A negativa se somou a uma outra, a de Alison Rodrigues, cuja vaga negada em Medicina gerou a repercussão que trouxe o assunto ao debate público. São múltiplas polêmicas: o que são as comissões de heteroidentificação e qual seu papel? Quais os critérios para avaliar a pertinência da autodeclaração? Isso equivaleria a um “tribunal racial”?

Em busca de respostas, o Jornal do Campus ouviu a USP, coletivos negros e estudantes que passaram pelo processo. As entidades e a Universidade são unânimes em defender o processo de heteroidentificação como uma conquista. Argumentam que as comissões são um importante mecanismo contra fraudes e que eventuais falhas devem servir para aprimorar a política de cotas – e não para combatê-la.

Como funciona a comissão

A comissão ou banca de heteroidentificação é composta por cinco pessoas, sendo uma docente da USP diretamente eleita; uma discente da pós-graduação indicada pela Coligação dos Coletivos Negros da USP; uma discente da graduação indicada pela Coligação dos Coletivos Negros da USP; uma representante da sociedade civil organizada que atue na defesa das ações afirmativas; e uma funcionária técnica-administrativa diretamente eleita. Para atender à demanda de todos os campi, duas bancas foram montadas, cada uma com cinco integrantes, para fazer a análise dos candidatos pretos e pardos (PP).

O objeto de análise da comissão é a foto enviada pelo candidato no momento de sua inscrição para o vestibular. Deixando de lado a descendência, as características fenotípicas (cor da pele, os cabelos e a forma da boca e do nariz) são critérios avaliativos da banca. A escolha se ampara no argumento de que o racismo no Brasil historicamente se expressa conforme as características físicas.Se a autodeclaração for negada pela primeira banca, a foto é encaminhada para a segunda turma e, se for duplamente negada, o estudante é convidado para uma oitiva, de forma presencial, se for candidato da Fuvest; e virtual, se for do Enem ou do Provão Paulista.

Em 2024, a banca já avaliou 1.606 estudantes, sendo 86,4% aprovados na primeira banca, resultando em 11,6% (ou 187 pessoas) com sua autodeclaração negada pela banca de heteroidentificação, além de 2% que não compareceram às oitivas – os dados são parciais porque as bancas ainda ocorriam quando esta edição foi fechada. Procurada pelo Jornal do Campus, a Diretoria de Mulheres, Relações Étnico-Raciais e Diversidades, da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), informou que as totalizações referentes aos ingressantes em 2023 não são disponibilizadas ao público. 

No caso de Caique, seus advogados Maria Isabel e Ricardo Catapani afirmam que a insatisfação vem principalmente da falta de questionamento de ancestralidade, já que os familiares são declarados pardos e negros, e o estudante sempre se descreveu como pardo. “É lamentável e desgastante emocionalmente para o aluno que se sente constrangido sob o olhar de pessoas maldosas que acham que ele é um oportunista, quando na realidade não é”, afirma a defesa.

No dia 5 de abril, a USP disponibilizou a justificativa do caso Alison. A banca concluiu que o candidato não se encaixaria na cota PPI porque “tem pele clara, boca e lábios afilados, cabelos raspados impedindo a identificação, não apresentando o conjunto de características fenotípicas de pessoa negra”.

Outra estudante entrevistada de forma anônima pelo Jornal do Campus passou pela banca ao se candidatar para o curso de Jornalismo na USP. A estudante concorria a uma das seis vagas disponíveis para cotas. Para ela, o processo se iniciou com o recebimento do e-mail a convidando para a oitiva. Após o indeferimento, a candidata teve 48 horas para entrar com o recurso, ao qual obteve retorno após 20 dias.

Apesar de não ter sido prejudicada em relação ao calendário escolar, a estudante teve atraso nas solicitações para benefícios ao transporte, por exemplo. Por fim, a candidata foi aprovada pela banca da PRIP a partir do recurso, que foi negado pela comissão de heteroidentificação. 

A candidata informou que o processo teve apenas duas fases: a leitura de uma ata que confirma que se apresentou à banca da PRIP para a cota e a confirmação ou negação da vaga; ou seja, realizou os mesmos procedimentos solicitados pela banca de heteroidentificação. “Foi bastante protocolar, mas acho que isso acabou me deixando mais intimidada, porque eles [comissão] não foram claros com os critérios que me fizeram ser desclassificada nas duas etapas”, aponta sobre a banca da PRIP.

Defesa das cotas

Com a implementação da Lei de Cotas na USP, em 2018, a banca de heteroidentificação passou a ser reivindicada. Para a Coligação de Coletivos Negros da USP e o Núcleo de Consciência Negra da USP, a comissão representa “a principal vitória do Movimento Negro” na USP desde a conquista das cotas raciais.

A codeputada estadual Letícia Chagas, integrante da primeira turma de estudantes cotistas que ingressou na USP, reconhece que a banca não está isenta de erros. Ela defende que sua existência permite a correção desses erros tanto por meio de recurso dentro da Universidade quanto pela via judicial, a exemplo da estudante anônima e de Caique, respectivamente. 

Letícia alega que as falhas de avaliação da comissão não justificam que setores ataquem a legitimidade da política de cotas raciais. As lideranças negras da USP concordam: “É preciso que esses debates se desenvolvam não com o intuito de desacreditar as bancas, mas sim defendê-las e aprimorá-las, reconhecendo sua eficácia na salvaguarda da política de cotas raciais.”, dizem, em nota, sobre os casos que foram repercutidos na imprensa.

Para ela, a atual regulamentação não contempla a integridade dos estudantes que deveriam estar na Universidade, que impede o avanço do debate sobre a ampliação das políticas de acesso. “Nós precisamos debater a urgência de ter cotas trans na universidade e de um vestibular indígena, que foi algo aprovado pela Unicamp, que já existe na UFSCar e que nós poderíamos fazer aqui também, mas a USP não quer discutir um projeto de diversificar a universidade”, declara.