Planos pedagógicos conflitam com a necessidade de trabalho de estudantes ingressantes
Por Bárbara Bigas, Beatriz Pecinato e Julia Estanislau
Olívia*, ingressante de Relações Públicas na Universidade de São Paulo (USP), recentemente teve seu contrato de estágio recusado pelo seu departamento. “Quando enviei a documentação para a seção de estágios, me responderam que não iriam assinar porque eu estava no primeiro ano. A principal justificativa foi o plano pedagógico”, disse para o Jornal do Campus (JC).
O plano pedagógico do curso de Relações Públicas recomenda o estágio a partir do 3º semestre e diz que alunos ingressantes não estão aptos a realizá-lo. “O estágio complementa a formação acadêmica e prepara para a vida profissional, mas os alunos o estão enxergando como uma fonte de renda”, afirma Valéria Castro, coordenadora do curso de Relações Públicas da USP.
Como alternativa, foi recomendado que Olivia fizesse inscrição no Programa Unificado de Bolsas de Estudo para Apoio à Formação de Estudantes de Graduação (PUB) ou no Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE), embora a estudante não se encaixasse nos parâmetros do PAPFE e não tivesse garantia sobre a bolsa PUB.
João Pedro Clini, estudante de Economia na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, também teve seu estágio indeferido sob a justificativa de baixo desempenho acadêmico. Ele conta que, com a reforma da grade curricular de seu curso, os ingressantes passaram a ter mais dificuldades acadêmicas: ‘’Principalmente eu, que venho de um ensino médio comum’’. Para João, o estágio é uma forma de aliviar os gastos da família e custear o aluguel da república onde vive. Questionada pelo JC sobre a mudança na grade curricular, a FEA alegou não ter as informações necessárias para responder.
Os relatos de Olívia e João revelam mais uma faceta das dificuldades de permanência na Universidade. “O que me foi exposto como justificativa mostra um elitismo gigantesco. Não é todo mundo que consegue ficar um ano inteiro sem trabalhar”, comenta Olívia.
Hoje em dia, os dois estudantes procuram bolsas de Iniciação Científica como fonte de renda. “Ainda vou precisar da ajuda dos meus pais, a bolsa não cobre o meu aluguel e minhas despesas”, afirma João. “Eu não enxergo outro motivo para priorizar o estágio no primeiro semestre fora a questão financeira”, completa Olívia.
Vitor Blotta, professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes (CJE-ECA) da USP, e coordenador da seção de estágios, explica que os critérios utilizados para a assinatura de contratos dessa modalidade são a adequação da atividade de estágio com as características do curso, carga horária adequada e inexistência de conflito com horários de disciplinas. Esses requisitos fazem parte da Resolução nº 5528, de 18 de março de 2009, e regulam os estágios em toda a USP.
O projeto político pedagógico de Jornalismo e Editoração, assim como o de outros cursos de graduação da USP, recomenda que os alunos trabalhem a partir do segundo ano. A intenção, segundo a Universidade, é que haja dedicação dos alunos às disciplinas teóricas e introdutórias.
Porém, o professor disse entender as razões por trás dessa procura considerada “precoce”. “É um sintoma das necessidades econômicas dos estudantes, mas também da precarização do trabalho. Muitas vezes empresas buscam estagiários para cumprir atividades de profissionais formais. Há uma pressão do mercado pela contratação cada vez maior de estagiários, e isso coincide com a necessidade de renda das pessoas”, diz.
O JC tentou contato com a Seção de Estágios da ECA, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
Um problema frequente
Filipe Saguino, aluno do curso de Ciências Atuariais na FEA, teve seu estágio negado no segundo semestre da graduação. Natural de Jundiaí, interior de SP, precisava do dinheiro para se manter na capital.
Para ter o contrato de estágio aprovado na FEA, o aluno deve concluir 25% dos créditos totais do curso para 20 horas semanais de estágio ou 50% para 30 horas semanais. Filipe não teve seu contrato assinado devido a essa regra.
Orientado pelos professores a levar o caso para uma reunião da Comissão de Graduação, optou por não seguir esse caminho. A solução encontrada foi se matricular em uma universidade particular, enquanto estava na USP, e seguir com o contrato de estágio por lá.
“Entrei em contato com faculdades particulares e a Anhanguera de Osasco me informou que aprovaria meu estágio logo após a matrícula. A mensalidade era aproximadamente 25% do valor da minha bolsa de estágio, mas era melhor do que perder a vaga”, explica.
Assim como ele, outros alunos da FEA recorriam a essa solução: “Acontecia bastante. Alguns alunos até davam dicas de quais faculdades eram mais baratas e menos burocráticas.”
Pagar uma faculdade particular, porém, não era a única solução encontrada pelos alunos. Em busca de alternativas ao estágio, alguns alunos trabalhavam em regime CLT, com uma carga horária maior e um salário menor, prejudicando a permanência no curso. Outros trabalhavam como Microempreendedor Individual (MEI) .
A outra opção era entrar com um recurso judicial contra a Faculdade. “Era um advogado em específico que fazia para todo mundo, mas ele cobrava o primeiro salário das pessoas, e permitia até parcelar”, diz Lucas*, estudante de Economia na USP desde 2017. Como Filipe, ele também se matriculou em uma faculdade particular para conseguir trabalhar.
Pauta de conversa entre o Centro Acadêmico (CA) Visconde de Cairu e a diretoria da FEA por anos, uma alteração na política de estágio (Portaria FEA-10, de 31 de maio de 2017) foi deliberada em 2019, facilitando a assinatura dos estágios.
A partir daquele ano, casos excepcionais – de alunos que precisam estagiar para se manter no curso, mas não possuem os requisitos acadêmicos necessários – começaram a ser analisados e os contratos, aprovados. “Ficou muito mais simples, é só um papel que comprova que você tem necessidade financeira e aí liberam”, diz Lucas.
Ana Paula Garcia, presidente do CA em 2019 e hoje mestranda em Economia, avalia que a mudança aconteceu mais por pressão da Reitoria e dos estudantes do que por iniciativa da Faculdade. O volume de recursos judiciais contra a FEA “chegou a ser um problema, porque chegavam muitos processos”, explica.
“De fato, começar a estagiar no primeiro ano é ruim para sua formação, você não vai se dedicar da melhor forma. Mas, ao mesmo tempo, para um aluno pobre, isso pode ser definidor para ele continuar na universidade”, diz.
Os entrevistados comentam que o perfil do corpo estudantil da USP mudou com a entrada de alunos por meio do SISU, das cotas raciais e do Enem-USP, o que pode justificar a busca por estágios cada vez mais cedo. Segundo Valéria, estagiar no primeiro ano só seria possível com a aprovação de novos projetos pedagógicos.
João Silva, membro atual do CA da FEA, relata que, depois da deliberação sobre a política de estágio em 2019, a entidade não tem recebido relatos de estudantes com estágio indeferido pela Faculdade.
*Para preservar a integridade e o anonimato das fontes, os nomes foram alterados.