Quantos bolsonaristas cabem na Paulista?

Para além da diferença de números, ataques políticos à estimativa da USP revelam descrença da extrema-direita na universidade

por Luana Takahashi e Júlia Galvão

Após o início das investigações da Polícia Federal contra Jair Bolsonaro sobre um suposto golpe de Estado, o ex-presidente convocou um ato na avenida Paulista, que ocorreu no dia 25 de fevereiro. Na tarde daquele domingo, chegaram à avenida caravanas vindas de diversos lugares do país, como Pernambuco, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. 

Danilo Queiroz, estudante de jornalismo da Universidade de São Paulo (USP), esteve no dia como observador e relatou que precisou atravessar pelas ruas paralelas devido à lotação na região principal. Ele também disse que algumas pessoas competiam para ver Bolsonaro e voltar para casa com ao menos uma foto. Vestidos de verde e amarelo, com bandeiras do Brasil e de Israel, parte dos apoiadores atenderam à convocação e declararam apoio ao político. 

 Ao longo do evento, imagens da multidão circularam nas mídias, fazendo surgir uma dúvida: quantas pessoas havia na Paulista? A Polícia Militar (PM) fez uma estimativa de 600 mil pessoas durante o horário de pico, enquanto o Monitor do Debate Político no Meio Digital, grupo de pesquisa da USP, chegou a um número mais de 3 vezes menor: 180 mil. 

A diferença entre as duas contagens levantou uma série de dúvidas e gerou ataques políticos nos dias seguintes à divulgação. “Parte da controvérsia é que estamos habituados com números muito elevados e inflados para eventos públicos, muitas vezes chutados. Então, quando vemos um número realista, parece que foi pouco, mas a manifestação foi gigante’’, explica Pablo Ortellado, professor de políticas públicas na EACH e coordenador do Monitor. 

O pesquisador se diz convencido de que a estimativa feita pela USP esteja bem próxima da realidade. “Foi a manifestação mais numerosa que registramos nos últimos dois anos’’, afirma. Pelas contas do Monitor, a festa de vitória nas últimas eleições de 2022 do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, à título de comparação, contou com um público de cerca de 58,2 mil pessoas. 

A diferença entre as contas é atribuída ao uso de metodologias. Emerson Massera, porta-voz da PM, informou ao Jornal do Campus que, para a contabilização, o local foi dividido em diferentes áreas, cada uma com um coeficiente de concentração de pessoas diferente, determinado a partir de imagens aéreas e da observação de agentes em solo. ‘’A técnica consiste basicamente na multiplicação da área pelo coeficiente de ocupação’’, e o cálculo é realizado em seguida com a ajuda do software Copom Online. Dessa forma, a corporação constatou 750 mil manifestantes ao todo: 600 mil na Paulista, além de 150 mil em ruas adjacentes. 

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública alegou que falsas divulgações foram atribuídas à PM e eram superiores à contabilizada pela instituição. Segundo a Polícia, a estimativa de público é usada para decisões operacionais, e é uma ‘’cortesia’’ oferecida quando há grande interesse por parte da mídia e da própria sociedade. 

A pesquisa da USP, por outro lado, usou um software de Inteligência Artificial que é capaz de identificar e contar cabeças de uma foto a partir de um treinamento. O grupo capturou dezenas de imagens da manifestação com drone, que registraram nuances de público ao longo das horas. O método possui diversas aplicações, como a contagem do número de cabeças de gado. 

Ortellado entende que ainda há falhas no processo e o sistema tem uma margem de erro de 12%, errando para mais e para menos. O software pode deixar de reconhecer um indivíduo, ou então, considerar objetos presentes como cabeça. ‘’O nosso método tem algumas limitações, mas nas condições em que nós estávamos, isso não fez uma diferença que vai de 180 mil para 750 mil’’, conclui. Por ter acompanhado manifestações nos últimos 8 anos, o pesquisador considera a estimativa da PM “muito inverossímil’’.

Ataques políticos e descrença na universidade

A polêmica, porém, extrapolou as divergências numéricas. Após a divulgação da pesquisa feita pelo Monitor, uma onda de ataques contra o grupo de estudos e contra a Universidade como um todo foi observada nas redes sociais. A cadeia de comentários partia, principalmente, de grupos bolsonaristas que, em sua maioria, questionaram o valor apresentado pelo grupo e alegaram que os pesquisadores estariam sendo partidários.

 Camila Rocha, doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap),  explica que existem duas principais finalidades para esses ataques: a primeira é gerar conteúdos para as mídias sociais e ridicularizar quem está na universidade; a segunda, com um teor institucional mais complexo, busca a retirada de recursos públicos da universidade. Ela exemplifica com o que ocorreu durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, em que houve a mobilização de um grande desmonte das universidades. “Só não foi pior porque teve uma manifestação de estudantes e professores contra os cortes, mostrando a força da comunidade acadêmica brasileira. Foi um momento de resistência.‘’

A cientista política aponta ainda que não apenas as universidades, como também a maioria das instituições relacionadas ao conhecimento e à ciência, estão sentindo as consequências do aumento da descrença nas esferas institucionais. “Entidades que geram o debate público dominante, como institutos de pesquisa, grupos de mídia tradicionais e setores do governo — como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) —, são os alvos mais atacados pela extrema direita.’’

O negacionismo presente nesses debates sempre existiu, mas a pesquisadora relata que houve um aumento considerável durante a pandemia, período em que o governo incentivou o uso da cloroquina como remédio para tratar a Covid-19 e, posteriormente, questionou a eficácia das vacinas  — reforçando o descrédito na comunidade científica. 

Explicar o motivo que leva alguns setores da sociedade a desmoralizar as universidades é um debate profundo, mas Camila esclarece que o distanciamento das pessoas desses ambientes colabora com a formação do cenário de descrença. “Existe um certo descolamento da universidade com a sociedade. Ela tem uma origem elitista e nunca se democratizou como deveria, como aconteceu em outros países. Por conta desse histórico, a população não foi socializada para valorizar a universidade e entender o que é feito nela; não por falta de vontade, mas por ausência de oportunidades”. 

A partir disso, o bolsonarismo parece ter sido bem sucedido em difundir a ideia de que as universidades não apresentam utilidade. “O modo como a sociedade vê a universidade gera uma valorização, ou desvalorização’’, comenta. Em conjunto a isso, propaga-se uma política do medo, que faz com que algumas pessoas acreditem que a universidade pública é capaz de “corromper” o indivíduo.. 

Camila também conta que há um outro motivo que pode explicar a desconfiança gerada em torno de respostas e explicações dadas por acadêmicos: ‘’As pessoas têm pouco acesso a como as coisas funcionam e precisam confiar puramente em especialistas, o que levanta muitas desconfianças’’. 

Apesar do negacionismo e descrença terem aumentado, pesquisadores compreendem a necessidade de buscar práticas que colaborem com a mudança dessa realidade. “Se a gente não agir para diminuir essa desconfiança, chegará um momento em que as universidades vão sofrer ainda mais com isso”, afirma Ortellado. O pesquisador acredita que é dever das instituições de ensino prestar contas à sociedade, oferecendo ainda mais contribuições e transparência.

Ortellado relata que, principalmente na área de humanidades, há poucas pessoas conservadoras. “Elas são metade no Brasil e são a ínfima minoria nas universidades. Esse é um dos motivos que gera essa desconfiança e isso não faz bem”, completa. Camila Rocha destaca que essa é uma questão de longo prazo que envolve maior democratização do acesso e da permanência no quadro de alunos, professores e direção, o que poderia reduzir a distância entre a universidade e a sociedade.