Registros de uma História Inconsolável

Por Júlia Moreira e Nicolas Vaz Coelho

Na censura de um grito livre, seu desespero entoava um recomeço. Com os vidros do carro fechados e a necessidade de reconstruir todo o seu projeto de vida, ela dirigia pela Marginal, angustiada e reduzida ao essencial. O ano era 1971 e Lílian Meyer era recém-liberta pela Operação Bandeirantes (OBAN), investida do Exército para caçar opositores do Regime Militar. 

Quase como um legado geracional, uma memória falada, a frase de seu pai emerge na entrevista, intitulando agora o momento inconsolável: “Não existe tortura até que você seja torturado’’.

Estudante durante a Ditadura e hoje psicóloga formada pela Universidade de São Paulo (USP), Lílian, quando foi presa, fez questão de que houvesse testemunhas para que não fosse morta. Ela tinha que voltar. Por mais de 15 anos, ficou sem se lembrar de todos os fatos, até que uma entrevista os reavivou. Mesmo que a dor da lembrança incidisse em uma ferida impossível de esquecer.

Ainda que a USP fosse uma ilha, um lugar onde se respirava resistência, você poderia se afogar antes que chegasse à margem. O grito seco na garganta era atômico, abrasivo. Para quem viveu na pele, a sensação é difícil de esquecer: assustadora. Alberto Alonso, estudante de geologia e integrante ativo do movimento estudantil em 1968, revisita o temor de sair do campus durante a repressão. “Medo… muito medo. Sair da cidade universitária era uma temeridade, de encontrar uma batida policial, era preciso ter cautela.’’ 

Para Wilson Bueno, o período mais intenso da ditadura significou sua mudança para Londrina, um lugar menos “barra pesada”, afastando-se do cargo de docente na USP. Mas ele voltou a São Paulo quando soube que seu amigo e compadre, Jair Borin, havia sido preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). “Eu não tive medo, esse risco de negar minha amizade por conta da repressão nunca passou pela minha cabeça.’’

Em relações que ultrapassam a luta escalonada, talvez a verdadeira memória inconsolável seja o sentimento da saudade e das possibilidades do que poderia ter sido. Em uma viagem por prateleiras mentais, a dor fantasma é sempre a mesma. É o sofrimento, mesmo depois de cessada a agressão.

Na história de Adriano Diogo, a participação na luta foi como um chamado de vida. Expulso da escola durante o Ensino Médio por participar de intimidações contra a seleção estadunidense nos jogos Pan-Americanos de 63, em São Paulo, foi-lhe dito que não poderia entrar na USP, ainda que o futuro reservasse o contrário. Em 1969, ele passou no Instituto de Geologia, que se resumia a alguns barracões.  “Aí eu fiquei quietinho, né? Bom, já que eu entrei na USP, não vou me meter em confusão. Não vou me meter em movimento estudantil.” 

Mas o silêncio não é uma opção para aqueles que anseiam por justiça. Conhecido como Mug, o recrutamento de Adriano ajudou no transporte de pessoas e materiais. Ele era um dos únicos estudantes com carro na época. 

Naquele tempo, nas pequenas brechas da ditadura, a luta dos estudantes era calculada em uma batalha suprimida, ainda que conjunta. Ser parte de um movimento? Um risco. Valia a pena? Um simples panfleto poderia ser subversivo.

“Aí você imagina, eu tinha 19 anos, saía todo dia da USP para encontrar os nossos companheiros foragidos, e que se fossem pegos, seriam mortos”, relembra. Adriano foi preso em 1973, enquanto ele e sua esposa se preparavam para fugir. Quando saiu da prisão dois anos depois, não queria mais ser geólogo. Sua atuação na revolução não poderia ser daquela forma, a repressão não conseguiu cessar seu desejo por mudança.

Em uma guerra inquietante, a dissolução dos movimentos estudantis em 1973 fez com que a luta fosse parar nas entrelinhas da clandestinidade. “O recado estava dado: não se metam”, relembra Lílian. Mas ela, Adriano e Alberto estavam bem ali, na linha de frente. Personagens ativos da luta estudantil e amigos de Ronaldo Mouth Queiroz e Alexandre Vannucchi Leme, ambos vítimas fatais da repressão, eles uniam esforços em uma tentativa de nutrir uma democracia que estava anêmica de igualdade e direitos.

No escapismo da dura realidade, o trio performava um sonho de liberdade, e a arte, então, tornou-se uma aliada no movimento. Os vocacionados a viram como um suspiro, um mantra que aliviava a tensão dos dias. As histórias contadas aqui se cruzam, não apenas na luta declarada, mas nas sutilezas da arte. 

Enquanto cultura, o teatro operava como um reduto, onde as manifestações pela liberdade encontravam abrigo. Lílian, por exemplo, brilhou nos palcos como Doris Day, quando integrou um grupo de teatro amador no Sesc. Ela tinha vontade de viver e era jovem: “Havia alegria também”. 

A liberdade, na epifania de um sonho tácito, era o melhor regime para viver consigo mesmo. Para Wilson, valeu a pena a resistência, porque não havia coisa pior do que viver à margem dos poderosos. “Isso eu aprendi com a ECA”, contou. 

Ainda que essa fosse a antítese de um emaranhado de angústia e medo, o otimismo batia a porta, eles foram em frente: “Enfrentei a ditadura. Eles me trucidaram. Mas eu estou vivo, enfrentando esses caras até hoje”, enfatiza Adriano. Foram anos cruéis, injustos e desumanos. Deixar barato, mesmo após 60 anos do período, não é uma escolha. Em sinapses que fluem pela mente, corpo e tempo, o registro não pode ser apagado.