A cópia de livros deve ser liberada?

Uma proposta de mudança na atual lei de direito autoral divide membros da comunidade universitária. Proposto pelo Ministério da Cultura (MinC) e em processo de análise na Casa Civil, o anteprojeto busca liberar a cópia integral de livros para fins não comerciais. A nova lei prevê que uma parcela do valor arrecadado com a reprodução seja revertida para o autor e a editora, mas não é consenso se essa é a melhor solução para conciliar os interesses envolvidos
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[O projeto de lei] é uma pirataria intelectual institucionalizada – Samira Youssef Campedelli
A lei atual é uma política que só beneficia o intermediário privado – Pablo Ortellado


[O projeto de lei] é uma pirataria intelectual institucionalizada

Samira Youssef Campedelli é professora do curso de Editoração da USP

Jornal do Campus: A senhora acredita que a mudança na lei proposta pelo MinC seria a melhor maneira para se ampliar o acesso ao conhecimento?
Samira Youssef Campedelli: Não acredito. Essas cópias são efêmeras. Não constituem bibliografia duradoura. Não “preservam o nosso patrimônio cultural”, como diz a lei. Antes, [as cópias] contribuem para tornar esse patrimônio volátil.

JC: Por que a senhora é contra a realização de cópias?
SYC: Porque se trata de uma pirataria autorizada, caso esse projeto de lei seja aprovado! É uma pirataria intelectual institucionalizada. Não me refiro apenas ao livro, evidentemente. No caso específico dessa prática (a cópia reprográfica), são atingidos os que compõem o tripé “autor/obra/público”: o autor, porque sua produção intelectual fica disponível para ser usurpada; o editor, que pagou por direitos de edição e investiu na cadeia produtiva (editoração textual, composição, revisão, impressão, estoque, transporte para distribuição etc) também é usurpado; o público em geral, porque a cópia é volátil, não tolera armazenamento, é efêmera, redunda em perda. A quem interessa a cópia? Ao comerciante de cópias, evidentemente, que lucra com a reprografia.

JC: Qual é o principal impedimento à difusão do conhecimento? É só o preço dos livros ou há outras barreiras?
SYC: O preço do livro está relacionado à tiragem. Pequenas tiragens encarecem o exemplar. A concorrência da pirataria também contribui para tal em até 40% a mais. Alunos de cursos superiores às vezes só necessitam de alguns capítulos e acham que não precisam do livro todo… O que não deixa de ser um autoimpedimento ao conhecimento. Além disso, há escolas brasileiras que não [contam] com bibliotecário, o que constitui uma barreira organizacional. Outra barreira: livros esgotados. Enfim, é um assunto que precisa de aprofundamento, mais debate, mais discussão, mais participação de editores, de autores.

JC: A quem a lei atual protege? Que interesses estão envolvidos nessa proteção (autor, editoras, mercado, estado…)?
SYC: Essa lei não protege. Tudo leva a crer que a proposta desprotege. Dados da ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos) apontam que o mercado editorial brasileiro perde mais de R$ 1 bilhão/ano por causa da pirataria do livro.

JC: A senhora acredita que haja um desequilíbrio entre o interesse público e o interesse privado quando o assunto é propriedade intelectual?
SYC: Sem dúvida. Os direitos autorais refletem internamente o choque entre os interesses privados do autor e demais titulares de um lado, e os interesses coletivos e difusos da sociedade em geral, principalmente no que se refere ao acesso ao conhecimento, daí a necessidade de viabilizar modos de o público usufruir obras artísticas, literárias ou científicas. As bibliotecas, os museus, os acervos, as hemerotecas, enfim, todo tipo de armazenamento é necessário para garantir o acesso público. Mas não o desserviço que essa lei – necessariamente – vai promover. Porque é muito difícil exercer o controle da cópia para consumo pessoal, conforme a lei propõe… Quem vai controlar isso?

JC: O que deve ser feito para possibilitar e melhorar esse acesso sem prejudicar o autor?
SYM: Podemos aproveitar o modelo em outros países, nos quais partes de livros podem ser copiadas, desde que, ao reprografar, seja imediatamente creditado à editora o valor referente às páginas, valor esse que é, então, repassado aos autores. Desse modo, tanto produtor quanto criador são remunerados.

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A lei atual é uma política que só beneficia o intermediário privado

Pablo Ortellado é professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP e faz parte de um grupo de pesquisa sobre direitos autorais

Jornal do Campus: O que o senhor acha do anteprojeto do MinC?
Pablo Ortellado: Apesar de ter limitações, ele é muito bom e caminha no sentido certo. Está muito melhor que a lei atual, mas podia ser um pouco menos restritivo. Acho que deveríamos liberar [a cópia] sem pagamento de direitos autorais para fins didáticos, porque esses conteúdos já foram pagos! Precisamos de uma lei que permita, hoje, que os livros que já estão em circulação sejam copiados para fins não comerciais – não estou falando para fazer grana, para fazer edições piratas. Estou falando de eu escanear o livro e dar para meus alunos sem pagar direitos para o autor porque nós já pagamos por esses livros.

JC: O senhor poderia explicar melhor a parte em que fala que eles já foram pagos?
PO: O meu grupo de pesquisa descobriu que esses livros que são pedidos aos estudantes são feitos, na maior parte, com recursos públicos nos três pontos da cadeia produtiva: o conteúdo deles é fruto de pesquisa pública; todo o setor de produção e manufatura de livros tem imunidade tributária – e, portanto, podemos estimar quanto o Estado deixa de arrecadar, sendo, por isso, uma forma de subsídio público. Por último, 10% desse mercado é operado por editoras públicas.

JC: Então, seguindo a lógica, as obras deveriam ser abertas..
PO: Sim, porque já pagamos por isso! Por que deveríamos comprar esse conteúdo se ele já foi pago [por nós]? A parte mais cara de elaborar o livro não é a manufatura, nem a editoração, nem a impressão. A parte mais cara é a pesquisa científica.

JC: Qual o principal impedimento à difusão do conhecimento?
PO: Tem várias coisas. A primeira é que os nossos estudantes não têm os meios econômicos para comprar os livros. Fizemos um estudo com os estudantes da EACH (Escola De Artes, Ciências e Humanidades) e 80% deles comprometeriam toda a renda familiar de um mês para comprar a bibliografia básica do primeiro ano. Uma evidência complementar que eu posso dizer enquanto membro da comissão de biblioteca da minha unidade é que ela nem de longe tem capacidade para comprar a quantidade de livros para suprir essa demanda. É um volume de recursos que não está disponível nem para o estudante nem para a própria universidade. O segundo problema, uma questão que é tão importante quanto essa, é que um terço da base bibliográfica dos cursos está esgotada.

JC: E porque o senhor acha que a lei atual não permite a liberação desse conteúdo de livros técnicos e científicos, mesmo todo esse processo sendo publico,? A lei atual protege quem?
PO: A lei atual protege as editoras! Porque os professores ou recebem um valor irrisório ou nunca recebem. Do ponto de vista do autor, [o valor] é irrisório. Do ponto de vista do público é extremamente custoso, porque ele banca a universidade pública que faz esses livros. Do ponto de vista dos alunos, eles não têm dinheiro para comprar e um terço deles está indisponível. As editoras, que são as detentoras do direito autoral, regulam a política de acesso elas têm por meio da ABDR, uma política extremamente restritiva. Então é uma política que só beneficia o intermediário privado, em detrimento tanto do autor, que não ganha nada, como do estudante, que não tem os meios econômicos e sai prejudicado na sua atividade pedagógica.

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