Políticas públicas para habitação em São Paulo são inadequadas

Para pesquisadores, questão de moradia em São Paulo é mais complexa e abrangente que soluções elaboradas por governantes

Remoções e despejos, um número crescente de incêndios em favelas e conflitos com moradores de rua.  A situação da moradia em São Paulo parece ter atingido um ponto crítico, apesar de estarmos em um momento que, devido ao aquecimento no setor da construção civil, os investimentos em habitação cresceram muito, com programas como o “Minha casa, minha vida” do Governo Federal e o Plano Nacional de Habitação lançado em 2009.

Para Euler Sandeville, pesquisador no LabCidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), nos últimos anos “houve um avanço normativo nas políticas públicas brasileiras, porém tal mudança não se estendeu às práticas”. Um exemplo dessa situação seria o expressivo número de remoções que ocorrem em São Paulo para viabilizar obras. Márcia Hirata, pesquisadora no LabHab da FAU e colaboradora do Observatório de Remoções da faculdade, aponta como os projetos urbanos que, deveriam resolver os problemas da cidade, acabam, por vezes, gerando novos conflitos. Faltaria um empenho maior em pensar a cidade e planejá-la corretamente, como um todo.

Tal preocupação foi levantada também por Sandeville. Para ele, os problemas atuais no âmbito urbano estão, em parte, relacionados à ausência dessa reflexão mais ampla. As remoções, por exemplo, seriam, em alguns casos, inevitáveis, pois se trata de área de risco ou local particularmente estratégico para uma obra de grande relevância para a cidade. No entanto, nem sempre é assim: o pesquisador afirma que há casos em que pessoas são desalojadas em benefício de projetos que poderiam ser feitos em áreas desocupadas. E, nos casos em que realmente não há escolha, essas remoções muitas vezes são feitas com descaso e sem grande planejamento, através de módicas bolsas-aluguel que, por vezes, não permitem que se consiga uma estabilidade residencial mínima.

Márcia aponta como “a pressão dos crescentes investimentos internacionais influencia na produção da cidade”, uma vez que essas obras e projetos afetam diretamente as plantas e valores sociais dos locais. O problema é que “se pensa muito mais em viabilizar um negócio dos investidores do que, de fato, um projeto para a cidade”. “Na hora de pensar em investimento, não se tem em mente a relação com o construir cidades, e sim a parte de resolver o problema econômico e não urbano”, completa.

Esse quadro repercute outra questão abordada por Sandeville: a relação centro-periferia. No LabCidade, o professor se volta ao estudo da perifeira, com ênfase na produção cultural desse âmbito, e na paisagem, analisada não só como o cenário natural, mas também como o espaço e relações subjetivas que se dão a partir dele. Para ele, os lugares em que nos movemos condicionam as percepções que temos acerca da cidade e da realidade em si.

O professor explica que essa análise se soma com o fato do centro de São Paulo abrigar uma minoria tecnológica e economicamente melhor equipada e de certa forma elitizada, que acaba por enxergar a periferia como inferior, como se esta não fizesse parte da cidade, apesar do fato de que a maioria de seus habitantes more ali.Tal condição faz com que muitos dos projetos públicos para a periferia carreguem os valores e soluções do centro, não levando em conta as contribuições e pontos de vista dos moradores. “É evidente que há carências na periferia, mas ali também há o que dar”, diz.

Isso se faz mais evidente ainda no caso dos projetos de reurbanização de áreas periféricas, principalmente de favelas. Para Sandeville, este tipo de iniciativa é valida enquanto tente incorporar a comunidade, tornando-se um processo participativo: “não se deve criar um fosso entre o técnico e o popular”. Assim, haveria sempre de se questionar para quem os projetos estão sendo feitos, afinal, a cidade é para aqueles que nela vivem.

Sob o risco de incêndios

Cerca de 1.440 pessoas ficaram desabrigadas após os dois últimos incêndios em favelas de São Paulo. O drama dos moradores da favela do Moinho e do Piolho (ou Sônia Ribeiro) representa um antigo problema da cidade que tem, entretanto, despertado maior interesse da mídia e da população nos últimos meses. A combinação do grande número de ocorrências em áreas de alto potencial imobiliário com o descaso do poder público em relação à população atingida fez com que novas preocupações fossem levantadas, como a suspeita de incêndios criminosos ligados a interesses políticos e econômicos dominantes.

Para a arquiteta Ana Paula Bruno, que trabalha no Ministério das Cidades, o poder público é, de maneira geral, muito despreparado para lidar com essa questão. Tendo trabalhado desde 2009 com a habitação popular e pesquisado os incêndios nas favelas de São Paulo em seu doutorado, Ana Paula acredita que tanto o senso comum quanto as ações públicas ainda não se voltaram para o foco desses acontecimentos, que é a vulnerabilidade estrutural das áreas de maior ocorrência de incêndios.

Ela afirma que a investigação de possíveis atos criminosos relacionados aos incêndios é importante para avançar na questão como um todo, no entanto, a discussão em torno das causas é secundária para solucionar o problema. Isso porque, de acordo com a sua pesquisa, os grandes incêndios se concentram em favelas que estão “em boa localização” – em torno de marginais, em regiões centrais e no perímetro de operações urbanas –  e que, por essa circunstância, são menos consolidadas materialmente. “São as favelas mais precárias. Em regra são em madeira”.

Para ela, esse padrão tem origem na “pressão de classe e de mercado” e ausência histórica de assistência à habitação popular nessas regiões e deve ser o ponto central da discussão, pois faz perpetuar a vulnerabilidade dessas favelas à propagação de incêndios. Dentre as outras características identificadas nos assentamentos de maior propagação de incêndios, está a alta densidade de edificações e a eletrificação precária.

Ao longo do tempo, as medidas públicas tiveram caráter de primeiro combate, como a implantação de brigadas comunitárias. Entretanto, para a pesquisadora, que trabalhou na Secretaria de Habitação da Prefeitura São Paulo de 2002 a 2009, o problema, que nunca chegou a ser “uma questão de governo” institucionalizada, deve entrar na agenda pública com essa dimensão estrutural, de melhoria da qualidade construtiva e urbanística desses assentamentos. “A única coisa que vai resolver isso é ter uma política habitacional que dê conta de substituir essas moradias que são improvisadas. Não dá pra conviver com isso. Conviver com isso é conviver com o risco de incêndio que ultrapassa o admissível”, completa.