Existe conflito entre ensino e pesquisa?

Com a rotina dividida entre atividades de ensino, produção de pesquisas, projetos científicos e participações no exterior, o verdadeiro papel do professor universitário gera discussões sobre como o docente do ensino superior pode conciliar suas tarefas acadêmicas
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Segundo professora da FFLCH, pesquisa e ensino não se separam – entrevista com Maria Célia Lima-Hernandes
Docente da FE aponta excesso de atividades como agravante – entrevista com Bruno Bontempi Jr.


Segundo professora da FFLCH, pesquisa e ensino não se separam

Maria Célia Lima-Hernandes é professora de Sintaxe e pesquisadora de linguagem e cognição do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP.

Jornal do Campus – Qual sua opinião sobre o conflito que acontece entre ensino e pesquisa
O conflito pode existir e, em algumas situações, é até salutar. Em outras situações, não é o que deve acontecer. O padrão de atuação numa universidade de ponta como a USP requer que o professor seja um pesquisador. Não se pode inovar sem a saudável articulação entre graduação e pesquisa. A graduação é a matéria-prima para a pesquisa e esta, a fonte de reflexão para a graduação. Justamente por isso, a meu ver, a pesquisa deve ser iniciada desde os primeiros momentos com ações mais metodológicas e de preparo teórico, antes que o aluno se vincule a uma área científica.

A pesquisa não deve ser associada com exclusividade à pós-graduação, pois nem sempre precisa ser o retrato fiel do Grupo de Investigação. A demanda de profissionais externos à USP é grande e temos que ter espaço para a penetração social desses grupos. Precisamos colaborar com o avanço do ensino lá fora, inserindo de métodos de atuação também. Pode entrar aí não só a pós-graduação, mas também as atividades de extensão. A pesquisa está em todas as instâncias universitárias.

O exercício da pesquisa acaba prejudicando, em alguns momentos, o ensino?
Poderíamos fazer um exercício hipotético e encontraríamos um enquadramento contextual. Um deles talvez seja quando o professor se ausenta durante um período para divulgar, debater e realizar pesquisas ou seus resultados em congressos. Pode soar como uma perda ao trabalho de sala de aula. Contudo, o benefício que esse afastamento provoca no pesquisador não o separa de suas rotinas pedagógicas. Ao contrário, a pesquisa invade espaços virtuais e tem um caráter on line irrestrito. A sala de aula passa a ser o moodle, o email, o blog, etc. A vontade humana de integrar e aprender é superior a qualquer distância física.

Na relação entre ensino e pesquisa, existe uma supervalorização de um ou outro dentro da USP
Não percebo assim em minha área, embora saiba que isso possa ser compreendido assim em outras. As diferenças entre áreas de conhecimento certamente propiciarão um peso maior ora para pesquisa, ora para ensino. Não se pode ensinar algo que não esteja consolidado como método ou teoria, mas nem isso é categórico. Os nichos de grande incerteza ficam mais concentrados, salvo engano, no campo na iniciação científica e da pós-graduação. Cada campo de conhecimento sabe o momento ideal para fazer a transposição didática e isso deve ser respeitado. Não se deve supervalorizar genericamente nem pesquisa nem ensino, e sim respeitar as tendências, as práticas e a filosofia de cada área. A diversidade de olhares é o que garante que se formem profissionais com bagagem para analisar o peso de ensino e de pesquisa e com suporte para propor uma adequação suficiente a contextos diversos.

Qual deve ser o principal foco do professor de ensino superior?
O professor focaliza o ensino, o pesquisador focaliza a pesquisa. Ocorre que essas duas parcelas de atuação, pelo menos aqui na universidade, não são segregadas. Somos professores e pesquisadores, e nem sempre sabemos muito bem separar um e outro dentro de nós, e talvez a razão dessa duplicidade esteja justamente no fato de que não se ensina o que não se sabe muito bem, e não se sabe o que não se experimenta. Somos todos professores e pesquisadores em constante devir.

Docente da FE aponta excesso de atividades como agravante

Bruno Bontempi Jr. é Diretor Regional da Sociedade Brasileira de História da Educação e docente e Vice-presidente da Comissão de Pós-Graduação da FE.

Jornal do Campus – Na sua opinião, o conflito entre ensino e pesquisa é real ou um mito?
Penso que há um desequilíbrio entre as duas atividades. Não há polarização, de fato, porque não escolhemos ou uma, ou outra, para nos concentrarmos, temos que desenvolver as duas. Isso acarreta em uma queda de qualidade no trabalho, por causa do volume de tarefas que desempenhamos. O que não podemos negar é que existem profissionais com um perfil mais para o ensino e outros mais para a pesquisa, e isso tem que ser respeitado.

Há certa facilidade em identificar a aplicação do trabalho de pesquisa no cotidiano do ensino. Mas o oposto não acontece. Qual é a importância do ensino para o pesquisador?
A definição não é dada facilmente porque a aplicação da pesquisa depende muito da área em que o profissional atua, mas é claro que existem cenários em que ela vai ser ajudada pelo ensino. Quando o professor envolve estudantes em determinado trabalho, isso enriquece o conteúdo das aulas. Em geral, as atividades laboratoriais são muito úteis na aproximação dos dois aspectos. Se uma área não permite a vivência do aluno com o fato, ele pode ser apresentado ao material, em sala, e dar suas impressões, a presença dele complementa ambos os lados.

O trabalho de pesquisa do professor pode atrapalhar no desempenho do ensino? Como avaliar as ausências dos professores que viajam a congressos e seminários, se afastando da sala de aula?
Primeiro, temos que nos livrar do paradigma escolar, onde o professor falta e os alunos vão para casa. Na universidade, tratamos com adultos, não com crianças. Se o professor se ausenta, sempre há outras tarefas, estudos, o aluno nunca está parado. Mas há casos e casos. A pergunta exemplifica uma situação em que o professor tem um trabalho sério a ser desenvolvido fora, mas há colegas que menosprezam o ensino e apenas usam da participação em outros eventos para não estarem em sala. Quando há boa fé, não tem por quê ele ficar acorrentado na sala.

Qual é o valor do trabalho de pesquisa, dentro do meio científico e acadêmico? Qual o papel das publicações científicas no cenário atual?
O sistema de Avaliação da pós-graduação, da Capes, é monstruoso em termos de volume. Existem publicações científicas já avaliadas como ‘tops’, e a consequência disto é que os trabalhos nelas expostos já são considerados, de forma direta, como tendo qualidade. Com esse método, a maioria dos pesquisadores vai direto até essas publicações, que não têm como publicar todo mundo, gerando fila, demora, estresse, é desestimulante. Eu mesmo tive que esperar três anos para ter um artigo publicado. Com o sistema atual, você é impelido a publicar sempre, e aí acaba não fazendo um trabalho como gostaria.

Então, o “conflito” entre estas e outras atividades de obrigação do profissional é gerado pela exigência de tempo acima do possível?
A impressão que fica é que o valor procurado por todos é o da produtividade. Na minha vida profissional, eu gostaria de ter um tempo a mais de ruminação em cima do meu trabalho, analisar se preciso estender minha bibliografia, mas não tenho como. Sempre há um sistema sem rosto cobrando prazos, metas, e isso acaba afetando também a vida do professor, que não consegue preparar nem dar uma aula melhor. A gente começa a jogar com o tempo do sistema, atualmente não se tem mais liberdade para administrar o próprio tempo.