USP inicia primeiro estudo com humanos sobre os efeitos do canabidiol no sono

A substância, derivada da maconha, pode ser uma alternativa aos atuais medicamentos para insônia (Infográfico: Arthur Aleixo)

A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (FMRP) deu início no final de agosto a um estudo inédito para investigar os efeitos de um dos componentes da maconha, o canabidiol (CBD), na qualidade do sono. Será a primeira pesquisa no mundo a avaliar de modo sistemático como o componente afeta o ciclo normal  do sono em voluntários humanos.

O canabidiol é uma das 480 substâncias químicas encontradas na planta Cannabis sativa, conhecida como maconha, e estudos recentes têm revelado seu potencial terapêutico contra doenças como epilepsia, Parkinson e transtornos de ansiedade. Alguns deles também sugerem que o CBD possa ter efeitos positivos nos distúrbios do sono.

A pesquisa da FMRP, porém, testará o CBD em voluntários sem quaisquer problemas crônicos para dormir. “Para entendermos como o canabidiol funciona nos transtornos do sono, primeiro precisamos entender de que maneira ele atua no sono normal”, explica José Alexandre de Souza Crippa, professor da faculdade e um dos pesquisadores envolvidos.

No sono normal, alternamos entre fases de menor atividade cerebral e sono profundo, e fases de “vigília”, nas quais o corpo está parado, mas o cérebro está ativo. É o sono REM (rapid eye movement, movimento rápido dos olhos), no qual acontecem os sonhos. Esse ciclo é chamado de arquitetura do sono, e fica alterado quando alguém tem problemas crônicos para dormir. Os testes buscam entender se o canabidiol traria alguma alteração a essa dinâmica normal, e de que forma isso acontece.

Para o estudo, serão avaliados dois grupos de 30 voluntários. Um deles receberá o canabinóide, e o outro um placebo. Cada um dos participantes passará duas noites no hospital: a primeira para que possa se acostumar com o ambiente, de modo que o exame esteja o mais próximo possível dos padrões comuns de sono do indivíduo. Na segunda noite, dependendo do grupo a que pertence o voluntário, será administrado o canabidiol.

A qualidade do sono é avaliada por toda noite por meio da polissonografia, exame no qual sensores registram a atividade cerebral, ocular (essencial para definir o sono REM), cardíaca e respiratória. “Os pacientes são filmados para registrar agitação e movimentos ao longo do processo. A pessoa também avalia como foi a qualidade de seu sono no dia seguinte, indicando se esteve confortável, se está com energia, e sente-se desperta”, conta Crippa. São ainda levados em conta os níveis de ansiedade relatados pelos voluntários, assim como o tempo que cada um levou para adormecer, tanto nos casos de administração do canabidiol como do placebo. Até o fechamento dessa edição, aproximadamente doze voluntários já passaram pelo teste.

O canabidiol utilizado no teste é semi-sintético, produzido a partir da Cannabis sativa mas modificado em laboratório de maneira a atingir 100% em nível de pureza. Dessa forma, separa-se completamente o CBD de outros componentes da cannabis, em especial o tetrahidrocanabidiol (THC), principal responsável pelos efeitos psicoativos da maconha. Essa distinção é bastante marcada pela faculdade, que em julho enviou uma carta aberta à Anvisa, defendendo a reclassificação do canabidiol (que é hoje proibido, e passaria a ser substância de controle especial). No entanto, os professores que assinam a carta destacam a diferença entre o CBD como componente isolado, sem características tóxicas, e a maconha, que contém múltiplos canabinóides, sendo contrários ao uso da mesma.

Enquanto o estudo atual é inédito em humanos, tanto no Brasil quanto internacionalmente, os testes anteriores, realizados com animais, obtiveram resultados dúbios. Alguns mostraram melhoras na qualidade do sono, enquanto outras pesquisas notaram que a substância levava os animais a acordar mais cedo que seu padrão normal. Definir com mais certeza qual o efeito para a espécie humana pode ajudar a determinar se o CBD é uma alternativa viável para os medicamentos disponíveis atualmente para a insônia.

A maioria deles pertence ao grupo dos benzodiazepínicos, que atuam no sistema GABAérgico do cérebro, e inibem os efeitos da ansiedade, induzem o sono e promovem a sensação de tranquilidade. Porém, esse tipo de medicação pode levar tanto à dependência quanto à tolerância (na qual a longa exposição ao medicamento leva à diminuição dos seus efeitos no organismo, necessitando de um aumento progressivo da dose). O canabidiol não coloca o paciente em nenhum desses riscos, e atua de outra forma, em um grupo de  receptores cerebrais envolvidos em processos relacionados à memória, à percepção da dor e à coordenação de movimentos, conhecido como sistema endocanabinoide.

por ANA CAROLINA LEONARDI