“As gestões políticas passam a cada 4 anos, a comunidade continua”

Ana Lúcia Pastore fala sobre sua exoneração da Superintendência de Prevenção e Proteção
Ex-superintendente Ana Lúcia Pastore foi exonerada do cargo em janeiro (Foto: André Meirelles)

Ana Lúcia Pastore, chefe do Departamento de Antropologia da FFLCH ficou surpresa ao descobrir, em abril de 2014, sua indicação para o cargo de Superintendente de Prevenção e Proteção da USP. Durante sua gestão, procurou explorar alternativas aos métodos aplicados até o momento, baseando-se, sobretudo, nos seus conhecimentos da área de ciências sociais, direitos humanos e justiça. Suas pesquisas envolvem segurança pública através de um viés menos repressivo do que é comum hoje no país. Um ano depois, a docente seria surpreendida novamente, desta vez por conta de sua exoneração do cargo.

O comunicado não foi feito pelo reitor, Marco Antônio Zago (que promoveu o diálogo como uma das bases de sua gestão e a indicação de Ana Lúcia como uma das ações para tanto), mas sim por seu chefe de gabinete. O lugar foi ocupado pelo Professor José Antonio Visintin, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia.

1. Ao assumir, quais projetos você deu continuidade na Superintendência durante seu mandato e quais foram alterados?

O único projeto estrutural que já estava registrado e nos pareceu bastante bom era um sobre repensar e revitalizar a arquitetura das guaritas do campus. Todas elas, você já deve ter percebido, são muito antigas. Algumas completamente inadequadas, não só por conta da salubridade de quem permanece lá dentro, mas também pelo ângulo de visão. Chegamos até a mostrar para os arquitetos da prefeitura. Há também o ponto de vista, que eu julgo mais relevante, da questão política mesmo. Com o auxílio dos próprios guardas universitários, fui elaborando uma nova política de segurança pra guarda universitária e para os campi da USP. A guarda responde à prefeitura do seu campus, e não à superintendência. Isto foi o que, durante nove meses, a pedido do reitor, eu estava fazendo. O resultado de tudo isso foi registrado em um relatório que, de alguma forma, se tornou público, e eu enviei para o reitor e para o grupo com o qual trabalhei (formado por professores, representantes do SINTUSP e do DCE).  Ali estão registrados todos os principais problemas que avaliamos e as propostas para sanar esses problemas.

2. O que você aponta como os principais problemas que a Superintendência de Prevenção e Proteção tem que enfrentar?

Em linhas muito gerais: a falta de uma política para a guarda universitária. Ela possui potencial para ser uma guarda civil, voltada para aspectos comunitários da vida universitária. A ideia era que a guarda universitária fosse realmente o carro chefe de um modelo de polícia comunitária, realizando uma política de acompanhamento de ocorrências no campus. Chamando a Polícia Militar, em situações extremas, de necessidade de contenção. A guarda é desarmada, em determinados casos ela não tem nem como atuar, mas a maioria das solicitações envolvem questões do cotidiano da vida acadêmica: pessoas perdidas no campus, animais abandonados, perda de pertences, organização de vias por conta de algum  evento. São várias questões que a guarda universitária teria condições de enfrentar, se bem preparada. Entretanto, há muito tempo ela não tem cursos de capacitação.

3. Qual é a situação da Guarda Universitária atualmente?

O contingente foi diminuindo ao longo dos últimos anos e não foi reposto, não houve  contratações equivalentes. No caso da guarda feminina, por exemplo: já foi uma equipe completa. Ela foi envelhecendo, as funcionárias foram passando para setores administrativos por conta da idade e não houve mais concursos para mulheres. Hoje não há nenhuma guarda feminina, em nenhum campus. No dia-a-dia da vida universitária, existem questões que envolvem violência contra a mulher e que causam constrangimento se atendidas por homens. São vários os problemas que poderiam ser enfrentados, mesmo com a crise da USP.

Outro problema sério é a sede da guarda universitária, sempre instável. Estava na antiga reitoria, mas só a parte administrativa. A Central Rádio e Monitoramento, lá na prefeitura. A Central Operacional na rua do anfiteatro. É uma  questão básica do ponto de vista do que é trabalhar bem, no meu entendimento. Eu não via as pessoas com quem trabalhava. Uma demanda que eu tinha, desde o começo, é que Superintendência tivesse uma outra sede, unificada. Tem gente muito boa na guarda universitária, mas eles estão muito desanimados, com a auto-estima baixíssima.

4. Quais são as principais deficiências da superintendência e as partes mais difíceis de se mexer?

Eu acho que qualquer superintendência tem que lidar primeiro com uma questão delicada: fazer uma interface entre a figura do reitor e um número significativo de pessoas (em geral funcionários e alunos). Em Prevenção e Proteção é a mesma coisa: um intermédio entre o reitor, toda a guarda universitária e quem trabalha com as questões de segurança no campus. Uma segunda dificuldade é que os reitores passam, a cada quatro anos, eles entram e saem. Os funcionários permanecem. Então as superintendêcias, na minha opinião, precisam muito ser ouvidas pela sua experiência acumulada. Isso deve ser levado em consideração. Seja para que se dê continuidade ao que foi bem sucedido, ou pra se mudar o que não estava indo bem. Esse descompasso entre as gestões de quatro anos e toda uma experiência acumulada por parte de funcionários com vinte, trinta anos de casa, é algo a ser pensado. Por isso uma das propostas que eu fiz foi que a superintendência funcionasse como um colegiado departamental. Nós estávamos, inclusive, trabalhando assim: eu como superintendente presidia um conselho, do qual faziam parte todos os chefes da guarda universitária, do setor operacional e também do administrativo, e juntos decidíamos. Isso é muito inovador, porque não é assim que funcionam as superintendências. O chefe é aquele que responde ao reitor e executa a sua política. Deve haver uma interface, pelo motivo que eu expliquei, mas por mais iluminado que seja um reitor, ele tem que dialogar com aqueles que estão na ponta da execução do trabalho. Deve haver um ajuste de metas. A ideia era fazer da superintendência um espaço de elaboração de políticas de segurança. Que dialogasse sim com a polícia, mas a partir de todo um balanço do que nós de fato pensávamos ser importante nessa relação. Eu não era e não sou favorável à polícia totalmente fora do campus, acho que há questões que envolvem segurança e há necessidade da atuação da polícia, porém não sou favorável que a polícia substitua a guarda universitária. Porque são coisas diferentes. A guarda tem que estar preparada para o dia a dia da convivência. A nossa polícia não é treinada pra isso.

5. Quais seriam as principais diferenças entre os princípios da guarda universitária e os da PM?

A guarda deveria, em um modelo ideal, ser o exemplo de uma guarda civil metropolitana. Desarmada, preparada para o público mais hegemônico que nós temos nos campi. A própria questão da abordagem, do atendimento tem que estar voltada a este perfil. A nossa polícia, especialmente a militar, como o próprio adjetivo já diz, é formada por uma lógica militar de enfrentamento. Sabe-se que a PM presta serviços muito bons e muito díspares. O corpo de bombeiros pertence à ela, por exemplo. E deveria estar muito mais presente no campus. Auxiliando a guarda no que diz respeito à segurança nos prédios, treinando pra primeiros socorros. Esse braço da polícia militar aqui seria fantástico, já o mais repressivo somente em situações pontuais e sempre articulado com a guarda universitária e com aspectos que precisam ser pensados, como o monitoramento do campus. Há uma proposta de todas as principais vias, especialmente pontos de ônibus, faixas de pedestres, cruzamentos perigosos e praças serem monitorados pela guarda univerisária, que deveria ser treinada para isso. Não adianta ter monitoramento eletrônico e pessoas que não sabem o que fazer em certas situações. Uma guarda bem treinada, pra dar suporte analítico a esse monitoramento  poderia fazer uma interface com a polícia, quando necessário.

6. Sua exoneração foi feita sob qual justificativa?

A justificativa foi muito evasiva. Eu voltei de férias, e no meu primeiro dia de trabalho fui chamada, imediatamente, à chefia de gabinete do reitor, onde fui comunicada de que a partir daquele momento eu não faria mais parte da equipe. Obviamente perguntei quais os motivos da decisão, a resposta é que foram: “vários motivos, vários descontentamentos”. E eu voltei a perguntar: “quais motivos, quais descontentamentos?” Novamente tive respostas evasivas, o chefe de gabinete, José Roberto Drugowich de Felício,  disse que não havia muito diálogo entre a superintendência de segurança e as outras. O que eu entendo que não é verdade, eu sempre estava em reuniões com o prefeito e com as outras superintendências, especialmente em relação a todos os conflitos que houve durante a greve. Com a Superintendência de Espaço Físico, por exemplo, foram muitos os pedidos pra que certos lugares do campus Butantã fossem cuidados, sem grandes investimentos. Um dos lugares muito frágeis é a portaria 3. Ali tem um quiosque abandonado, que é perto do ponto de ônibus, onde muita gente desce e é assaltada. Solicitei, desde outubro de 2014, que aquele espaço fosse cedido, pois com a nossa verba, o reformaríamos e faríamos dele um posto da guarda universitária. Isso era uma demanda de vários estudantes. Muitas reclamações diziam respeito a essa área do portão 3. Nós fomos estudar, vimos que aquele quiosque pode ser aproveitado por um custo muito baixo, que poderíamos arcar. Até janeiro, quando eu saí, nada de resposta. Isso tem que ser ágil, as pessoas se sentem inseguras e elas têm que perceber que a universidade realmente está preocupada e atuando. Eu entendo que há burocracia, caminhos administrativos. Houve toda uma morosidade, que pode ter sido entendida como falta de diálogo, mas na minha opinião houve muita demanda. Eu inclusive disse pro chefe de gabinete que não concordava com essa justificativa.

7. E aos seus olhos, qual foi o real motivo da exoneração?

Quando eu fui chamada, entendi que não era eu, Ana Lúcia, sendo chamada só pela minha trajetória acadêmica individual. Entendi que ao chamar uma antropóloga, formada também em direito, mulher, a ideia era trazer todo um conjunto de saberes da área de humanidades para a segurança pública, que é uma coisa rara, sobretudo no Brasil. São raras as pessoas que estão a frente de órgãos da segurança pública, com formação em ciências sociais. E é a área que mais estuda isso. Eu me senti honrada, não por mim, mas por acreditar que os estudos da área de humanidades teriam espaço. E eu atuei dessa forma. Sempre que me perguntavam o que eu pensava a respeito, falava não só em meu nome, mas do que eu havia estudado, lido e conhecido de outras universidades. Eu entendi que eu não estava ali simplesmente pra executar uma política, mas pra pensar uma política. E talvez eu tenha levado isso a sério demais.

8. Havia muitos embates, conflitos de opiniões?

Sim, alguns. Polícia no campus, por exemplo. Ou a questão da violência contra a mulher, principalmente nos trotes e mesmo no dia a dia da vida de algumas unidades, como no caso da Faculdade de Medicina. Nós começamos a levar muito a sério isso, nos demos conta de que unidades eram praticamente impermeáveis à guarda universitária. Em dezembro, a última vez que eu falei com o reitor (pois fui exonerada sem olhar para ele), falei da minha grande preocupação em relação à Faculdade de Medicina. Até aquele momento, ela era gerida, do ponto de vista da segurança, por funcionários da própria unidade. A guarda universitária não tinha acesso à faculdade, a nenhum relatório que circulava lá dentro, à nenhuma imagem do sistema de monitoramento interno. Tudo se dava de forma restrita, sem nenhum controle externo. E é claro que isso favorece a interesses locais e faz com que, por exemplo, alguém que se vê vitimizado tenha que recorrer ao diretor ou ao próprio agente de segurança da unidade. E se, justamente essas pessoas estão, do ponto de vista de quem foi vitimizado, de alguma forma envolvidos? Que segurança se tem em dizer, para quem você não confia, a sua situação de vítima? Deve haver um órgão totalmente externo, imparcial, separado e que seja da reitoria. Por isso que a ideia era que a guarda universitária tivesse um posto realmente na Faculdade de Medicina. Na Faculdade de Saúde Pública existe um posto da guarda, que inclusive realiza o monitoramento eletrônico de lá, mas ele não tem acesso à Medicina ou às suas imagens, que podem ser apagadas a qualquer momento. Não tem cópia em lugar algum. Isso não pode acontecer. Em lugar nenhum. A USP tem que ser permeável à sociedade que a cerca e a sustenta, inclusive com ideias.

9. A Superintendência de Prevenção e Proteção tentou de alguma forma mudar isso?

Eu pedi, pessoalmente ao reitor, que remanejasse o responsável pela segurança interna da Faculdade de Medicina, a pedido do próprio diretor de lá. Ele gostaria que isso fosse feito e pediu isso pra mim. Entretanto não era funcionário meu, eu não poderia remanejá-lo.

E ele não poderia?

Claro que sim, mas não queria tomar essa decisão sozinho. Ele gostaria de um amparo, e o apoio que eu poderia dar não seria administrativo, apenas político, por isso eu falaria com o reitor. E então pedi ao reitor que o ajudasse no sentido de tomar essa decisão, ele sim poderia agir administrativamente, essa foi a nossa última conversa.

Qual foi a resposta do reitor?

Ele estava digitando no celular, disse apenas que aquele era um problema do diretor da unidade. E eu respondi que sim, e que ele reconhecia o problema e por ser delicado, precisava de um amparo institucional maior. Ele repetiu que não era um problema dele, e sim do diretor.

10. Você acredita que essa discordância foi mais relevante que todas as outras pra sua exoneração?

Não, acho que isso foi a gota d’água. Eu era realmente uma pessoa que não estava ali meramente pra cumprir ordens, mas pra tentar construir um diálogo e pensar qual seria a melhor situação possível. Estava realmente muito disposta a responder às demandas do reitor e fiz o melhor que pude, mas também muito preocupada em atender as necessidades da comunidade. Se não houver uma interface entre a reitoria e a comunidade, que universidade é esta? É como eu disse, as gestões políticas passam a cada 4 anos, a comunidade continua.

Em linhas gerais, houve um desacordo político mesmo. O superintendente responde ao reitor, e a ideia de responder é confundida com a de acatar e não discutir, no melhor sentido do termo. Eu discuto com os meus orientandos e eles não acatam o que eu digo, nós construimos um pensamento.

11. Você acredita que a superintendência vá atuar de forma diferente em algum momento?

Se fui exonerada e se foi escolhido um profissional que, até onde eu sei, não tem nenhuma experiência com segurança pública, acho que a mudança vai ser nessa direção: de pensar segurança pública de forma superficial e atrelada a ideia da necessidade da polícia.

por JULLYANNA SALLES