Aula na Biociências acende debate sobre racismo no meio acadêmico

Professor discute tese controversa e causa polêmica em aula de pós-graduação

No dia 22 de abril, uma aula ministrada para a pós-graduação no Instituto de Biociências da USP foi ocupada por cerca de dez integrantes do movimento negro. O acontecimento se articulou em tempo real, em resposta ao ocorrido, noticiado nas redes sociais como “uma aula racista”. Representantes do grupo Ocupação Preta (OP) consideraram ofensiva a escolha do texto que o professor britânico e colaborador da USP, Peter Lees Pearson, levou para discussão em sala. Em vista disso, segundo fontes procuradas pelo jornal, discussões acaloradas e protestos de ambas as partes se sucederam na sala de aula do edifício André Dreyfus.

O texto gerador da polêmica é o artigo “A mais inconveniente verdade de James Watson: a realidade racial e a falácia moralista”, de autoria de J. Phillipe Rushton e Arthur R. Jensen, publicado em 2008 no editorial da revista científica Medical Hypotheses. Nele, o geneticista e ganhador do prêmio Nobel nos anos 1960 pela participação na pesquisa e descoberta da natureza da molécula de DNA, discorre sobre a ideia de que pessoas negras possuem menor capacidade intelectual do que brancas, usando como suporte para sua teoria estudos sobre coeficiente intelectual (QI) severamente criticados no meio acadêmico por seus métodos de realização. Conhecido por declarações gordofóbicas, homofóbicas e racistas, Watson chegou a falar em entrevista, a respeito de seu artigo, que, “apesar de esperar que todos [as “raças”] sejam iguais, qualquer um que já teve de lidar com um empregado negro sabe que não é verdade”.

Em nota de repúdio publicada no Facebook, a OP, movimento que busca discutir temas e pautas raciais e a questão das cotas na universidade, explicou os motivos para sua intervenção. Composto por pessoas negras de dentro e fora da USP, o grupo se mostrou insatisfeito com o conteúdo da aula, apontando o texto como ofensivo, já que “o artigo propõe análises comparativas de QI entre populações africanas, europeias e asiáticas, sugerindo uma inferioridade intelectual do povo africano com base em estudos de J. Watson”. A nota lembrou que os estudos de Watson foram rechaçados pela academia, tendo seu autor, inclusive, sido exonerado do cargo na Spring Harbor Laboratory (CSHL), em Nova York, devido às suas posições. A OP, ainda em nota, também acusou Peter de ter assumido uma postura racista, pois “defendeu subjetivamente o texto”. Para eles, o professor “não valorizava o diálogo”, “bateu palmas em cima das falas do estudantes negros”, “disse ‘shut up’ e se recusou a fazer a discussão em português”.

O fato dá prosseguimento à onda de agitação expressa em diversas manifestações recentes na USP, como por exemplo as ocupações do Conselho Universitário (CO), no dia 14 de abril, e da aula de pós-graduação em Ciência Política ministrada pelo professor e prefeito Fernando Haddad, no dia 27. Manifestações, essas, que marcam a intensificação da atividade de movimentos de base estudantil na USP este ano.

Uma resposta

O IB, em nota de esclarecimento, relatou que a disciplina durante a qual ocorreu a ocupação se chama “English for Science”, e almeja estimular a escrita e o uso oral da língua inglesa entre os pós-graduandos. Dentre as estratégias de ensino adotadas está “a indicação de textos publicados em revistas de circulação internacional”. O conteúdo destes textos teriam de ser polêmicos, a fim de aumentar o engajamento dos alunos no debate em língua inglesa. A nota também diz que, de acordo com o Professor Peter, “pretendia-se estimular o debate sobre até que ponto os argumentos apresentados pelo autor seriam cientificamente defensáveis, e não estimular qualquer forma de racismo”. E completou-se “ressaltamos que o Instituto de Biociências, em sintonia com a Universidade de São Paulo, estimula a tolerância e o respeito a divergência de opiniões, e a liberdade de expressão e discussão”.

Um olhar de perto

Davi Toshio, graduado em Biomedicina pela Universidade Federal do Pará, faz o curso em questão e estava na aula durante a intervenção. Segundo ele, o professor tinha alertado previamente a turma sobre o fato de o texto ser polêmico, e que por isso renderia discussões boas para treinar o inglês.

Para ele, entretanto, o professor Peter escolheu um tema inapropriado para ser discutido em sala, “apesar de que nenhum dos alunos concordou com o artigo e ninguém foi obrigado a acreditar no mesmo”. Toshio também apontou que Peter arguiu, baseado nos dados apresentados no texto, a possibilidade de existir diferença entre os QIs dos grupos. “Ele falou que os dados o convenceram de que possa existir diferença no QI médio entre as populações, e gostaria que fizéssemos uma análise crítica e impessoal. Nesta análise ele gostaria de saber se concordaríamos ou não com o tema, e por quê”, disse.

Segundo ele, o grupo entrou de surpresa um pouco antes do intervalo, mas a discussão se deu posteriormente, e tudo durou cerca de uma hora e meia. Sobre as acusações da OP contra Peter Pearson, Toshio acredita que “a partir do momento em que alguns membros da Ocupação Preta começaram a se exaltar, o professor também perdeu a paciência, mas ele tentou valorizar o diálogo no início”.

Em inglês?

Sobre bater palmas durante o discurso dos estudantes negros e de dizer “shut up” para suas falas, Toshio disse que de fato esse desrespeito aconteceu, “mas que isso foi muito depois do início da discussão, pois alguns integrantes do grupo apenas se direcionavam de forma agressiva nas falas”. Com relação a se recusar a falar em português, Toshio acredita que o professor fez isso “pelo fato de esta disciplina ser ministrada somente em inglês”.

Procurados pelo JC, alunos do Centro Acadêmico assumiram que, como disse Toshio, o professor não levou a discussão para o inglês numa tentativa de menosprezar os que faziam a ação de intervenção em sua sala. Também disseram que o tema trazido à tona pelo ocorrido, ou seja, a questão racial na ciência, necessita urgentemente ser colocado em discussão, já que o assunto ainda se encontra ausente de um debate que envolve diversos pontos históricos e culturais da nossa sociedade. Para eles, “é preciso discutir o tema. É pra haver censura? É pra trazer pra discussão? Se precisa debater o ambiente para que isso seja posto e, provavelmente, uma aula dada por um professor branco para uma classe quase completamente branca não deve ser”.

Tese que gerou polêmica em aula utiliza argumento de QI para afirmar a superioridade dos brancos (Arte: Marina Yukawa).

Por João Cesar Diaz e Luís Viviani