Prefeitura da Capital afasta servidores por assédio moral

Após 20 dias de paralisação e histórico de reclamações, funcionários conseguem afastamento de chefes abusivos

“Estamos adoecendo por assédio, homofobia, machismo e más condições de trabalho”. Assim se apresentaram à comunidade uspiana, em carta aberta publicada no dia 16 de abril, os funcionários da Prefeitura do Campus da Capital (PUSP-C). Após constantes denúncias de assédio moral contra chefes da unidade, os trabalhadores paralisaram suas atividades por 20 dias e, em negociação junto à reitoria, conseguiram com que fosse aberta sindicância para investigar as acusações.

As reclamações de funcionários da prefeitura contra seus superiores existem desde 2013, embora a unidade alegue não ter conhecimento de denúncias anteriores às do último mês. Além disso, diversos problemas de infraestrutura e queixa de sobrecarga de trabalho foram relatados pelos funcionários. Inicialmente, a intenção das vítimas era conseguir uma reunião com o prefeito, Arlindo Philippi Jr., mas a situação se intensificou quando não foram apresentadas medidas imediatas, tanto por parte da Prefeitura quanto da reitoria.

Assédio constante

Na carta aberta de 16 de abril, os trabalhadores, então paralisados, denunciaram uma série de casos de assédio moral, homofobia e machismo por parte de alguns chefes. “Queremos aqui relatar alguns desses casos, para que toda a universidade conheça e compreenda por que paramos.”

Na carta, chefes são nominalmente acusados de diversos casos de assédio a seus funcionários – incluindo conduta machista e homofóbica, ofensas diversas e o “encosto” de funcionários, deixados sem nenhuma atribuição por meses. Apesar das tentativas de contato, os repórteres não obtiveram respostas dos dirigentes citados.

O Jornal do Campus conversou com trabalhadores e trabalhadoras da unidade, que relataram algumas das situações enfrentadas. Para evitar retaliações e para preservar sua intimidade, solicitaram que seus nomes não fossem revelados, portanto todos os nomes usados são fictícios. Pelo mesmo motivo, os relatos também não citam os nomes dos chefes envolvidos em cada caso, uma vez que a reitoria não informou se todos os acusados serão sindicados.

Rafael, que é gay, conta ter sofrido perseguição de seu chefe por causa de sua orientação sexual desde que entrou na Prefeitura. “Ele me expôs a varias situações de humilhação, constrangimento”, relata. “Me perseguia, me proibiu de ir a uma consulta agendada no HU, tudo para mostrar que ele tinha poder e me humilhar”. Esse mesmo chefe, de acordo com o funcionário, ainda assediava uma colega sua , também homossexual, fazendo piadas homofóbicas e chamando-a de “sapatão”. “Ela tinha mais de 60 anos, e não podia falar com nenhuma mulher que ele [o chefe] dizia que ela ‘tava’ tendo um caso com ela”, Rafael diz. A funcionária, não aguentando mais o assédio, se demitiu este ano pelo Plano de Incentivo à Demissão Vonluntária (PIDV). Ele também tenta se transferir para outra unidade: “há dois anos eu não sei o que é ter paz”.

Tatiana, funcionária da Prefeitura há 20 anos, conta que mais de uma vez foi ameaçada por chefes por causa de problemas em seu trabalho. De acordo com ela, quando encontravam alguma falha, em função da sobrecarga de trabalho e da pressão de prazos, os chefes faziam insinuações do tipo “vai ser demitida, vai ser aberta sindicância”, em vez de conversar diretamente com ela. Ela relata que isso acontecia frequentemente, com diversos trabalhadores. “A minha opinião é que não é dessa forma, não é pressionando, ameaçando, tem que ter um diálogo. Tem que saber ouvir seus funcionários”, diz.

Outra trabalhadora, Célia, alega ter sido encostada pela chefia após iniciar um curso técnico para se qualificar em sua área. “Quando eu mostrei um documento pra minha chefe do curso que eu ‘tava’ fazendo, ela mudou sua postura, começou a me evitar”, ela conta. “Todo chefe que ia me passar tarefas, ela falava pra não passar.” Os colegas confirmam a história. Tatiana relata que “várias vezes eu quis que a Célia trabalhasse comigo, porque ela já trabalhou comigo, e ela trabalha bem, nunca tive nenhum problema ao longo dos anos. Mas eu nunca consegui, toda vez que eu pedia era negado”.

A funcionária ficou desde 2013 até este ano sem nenhuma atribuição, vendo seus colegas trabalhando e “se sentindo inútil”, como ela disse. “Quando chegava segunda-feira, eu saía para trabalhar por causa das minhas contas. Vontade mesmo de colocar o pé na USP, eu não tinha”. Ela, como tantos outros colegas, tentou se transferir para outra unidade, mas alega que a chefe dificultou o processo. A funcionária Mariana, também vítima de assédio que está em tratamento psiquiátrico, lamenta: “aqui na Universidade acontece assim com os funcionários. Se você não faz o que eles [chefes] querem, eles te colocam num canto, pegando mosca, não te dão serviço. Acabam com a auto estima da pessoa”.

Funcionários mantêm paralisação em 16 de abril.
Condições precárias

Além do assédio, os trabalhadores se queixam de sobrecarga, agravada pelas demissões de funcionários pelo PIDV sem abertura de novas contratações, e de problemas de infraestrutura dos locais de trabalho. Na carta citada, eles relatam “móveis e cadeiras em péssimo estado, rachaduras nas paredes, com claro risco de desabamento, instalações elétricas expostas, falta de forro no teto, falta de circulação de ar, locais de alimentação junto a banheiros, vestiário na cozinha, ambientes favoráveis à proliferação de roedores e insetos, enorme risco de acidentes, e nenhum conforto para o trabalho”. Mariana reclama: “eles reformam a sala do prefeito, enquanto a sala dos funcionários ‘tá’ caindo o teto”.

A carta também afirmava que todos estes problemas já haviam sido relatados, oralmente e por escrito, ao prefeito Philippi Jr. – os primeiros relatórios seriam de 2013 -, e nenhuma providência teria sido tomada. A Prefeitura nega. Em resposta aos nossos questionamentos, a Assistência Técnica de Relações Institucionais da Prefeitura alegou que “nenhuma denúncia formal chegou ao gabinete da atual administração da PUSP-C anteriormente”. A solicitação dos repórteres para realizar entrevistas diretamente com o prefeito foi negada.

Mariana nos contou ter elaborado, já em maio de 2013, um relatório sobre a situação do galpão de resíduos, com fotos e sugestões de reparos, que teria sido enviado ao prefeito, o que foi confirmado por outra funcionária, Juliana, responsável por um canal de comunicação institucional entre os trabalhadores e a administração da prefeitura.

Juliana ainda afirma que em outubro do ano passado, ao final da última greve de funcionários da USP, ela apresentou um relatório ao prefeito alertando que havia “problemas de relacionamento, situações de tensão e desconfiança mútua” entre os trabalhadores e chefes da unidade. Os problemas teriam sido reiterados em nova reunião com o prefeito em fevereiro deste ano, em que ela também esteve presente.

No dia 17 de abril, durante a paralisação, Juliana conta que Arlindo apareceu em uma reunião dos funcionários, e alegou que não tinha conhecimento das denúncias de assédio, ao que foi confrontado por ela com o relato destas reuniões.

De qualquer forma, em relação aos questionamentos sobre os problemas de infraestrutura dos prédios relatados pelos funcionários, apenas fomos informados que “o orçamento aprovado pelo Conselho Gestor do Campus da Capital e pelo Conselho Universitário, entre setembro e dezembro de 2014, tem prevista a reforma dos blocos F, I e A, além do Centro de Informações”.

Vinte dias de paralisação

Segundo Claudionor Brandão, diretor do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) que acompanhou todo o caso, os funcionários assediados, ao procurar a entidade, no início de abril, foram desaconselhados a se transferirem a outras unidades. “Falamos que não é o incomodado que tem que mudar, mas o incômodo”, comenta.

No dia 6 de abril, os trabalhadores se reuniram com o Sintusp e decidiram pedir providências ao prefeito, deliberando uma paralisação no dia 8 após não conseguirem com que fosse marcada uma reunião. “O prefeito lavou as mãos e a reitoria empurrou com a barriga”, diz Brandão. Rafael conta que chegou a falar com o vice-prefeito, Tércio Ambrizzi, mas foi ameaçado pela chefe. “Paralisar foi o único modo que a gente conseguiu ser ouvido”, diz.

Foi instituída, então, uma Comissão Permanente de Relações do Trabalho da Reitoria (Copert) – composta pelo procurador Salvador Ferreira da Silva, pela professora Ana Carla Bliacherine, Diretora Geral do Departamento de Recursos Humanos da USP, e pelo assistente e analista financeiro Daniel de Souza Coelho –, que prometeu averiguar as denúncias em um prazo de quinze dias. Os funcionários, no entanto, entenderam que a reparação deveria ser imediata e seguiram com a paralisação. “Retornar ao trabalho sem que esses chefes sejam afastados significa voltar a expor os funcionários à situação que já levou alguns de nós a adoecer”, afirmaram na carta aberta.

Seis dias mais tarde, em nota direcionada aos membros da comunidade universitária, a reitoria anunciou que “foi solicitado à Justiça que assegurasse o direito de livre acesso aos prédios da Universidade”, “fixando multa diária pelo descumprimento da liminar”.

Em 16 de abril, a Polícia Militar amanheceu na prefeitura alegando possuir ordem judicial para retirar os manifestantes do local. Imediatamente, porém, os funcionários se reuniram em assembleia e decidiram manter a paralisação.

Desfecho consensual

No dia 24 de abril, o prefeito comunicou que seria instalada uma sindicância para apurar os abusos, enquanto os chefes acusados seriam substituídos por interinos, uma vez que a Comissão Permanente de Relações do Trabalho da Reitoria (Copert) “concluiu que os relatos apresentados por funcionários indicam elementos caracterizadores de suposto assédio”.

A reunião final de negociação entre funcionários, sindicato e reitoria ocorreu em 27 de abril, quando a paralisação finalmente se encerrou após quase 20 dias.

Contatada, a reitoria informou que nenhum membro da comissão de negociação com os trabalhadores se pronunciaria, mas acrescentou que também foi acordado um ‘banco de horas’ para compensação do tempo correspondente à paralisação dos funcionários.

(Charge: Laís Tiranossauro)
Desconfiança

Funcionárias da prefeitura deixaram claro que não confiam na medida tomada pela reitoria. “A gente não tem sequer informações sobre a sindicância”, diz Juliana. “Na reunião de acordo de encerramento da paralisação com a reitoria nós solicitamos os nomes da Comissão Sindicante, perguntamos como iria funcionar, e não fomos informados de nada. Nem os funcionários assediados estão recebendo satisfações”. Mariana completa: “nós não estamos confiando nessa sindicância aberta pela reitoria, não”.

Ambas afirmaram que existem, ainda, cópias de diversos e-mails enviados por funcionários ao prefeito tratando de assédio, relatos escritos e outros documentos que comprovam seu conhecimento prévio da situação.

No entanto, Mariana afirma que os funcionários da unidade decidiram preservar tais documentos, ao menos por enquanto, pois estudam usá-los como prova em potenciais ações contra os ex-chefes no Ministério Público e na Justiça do Trabalho.

Por Fernando Magarian e Marcelo Grava