Casa do Estudante encara futuro duvidoso

Na moradia estudantil da Sâo Francisco, falta dinheiro e perspectiva de como receber quem precisa
André Leal e Abrahan Lincoln admiram a vista do terraço da Casa (Foto: Daniel Quandt)
André Leal e Abrahan Lincoln admiram a vista do terraço da Casa (Foto: Daniel Quandt)

Na Av. São João, Centro, perto do metrô Marechal Deodoro, uma porta de ferro e painéis remendados de vidro esconde-se, invisível, sob a sombra do Minhocão. Sobre ela, um pequeno letreiro dá a única pista de sua identidade: “Casa do Estudante”, ele informa, despretensiosamente.

Fora o desgaste evidente causado pelo tempo, pouco pode se ver da longa história do edifício desde sua inauguração em 1949 para suprir a necessidade de moradia dos alunos de Direito da USP, que inclui a operação de uma rádio pirata durante a ditadura militar e boatos de residentes ilustres como Michel Temer e Dias Toffoli, vice-presidente do Brasil e ministro do STF, respectivamente.

A torre

Lá dentro, atrás do pequeno portão de segurança que funciona hora sim, hora não, é possível ver logo de cara os buracos nas paredes e a fiação exposta, que o zelador do prédio, Pedro Barbosa, contorna com a vassoura, empurrando a sujeira para lá e para cá.

São dez andares, cada um com três apartamentos de dois quartos. Em cada quarto, reside um estudante, que tem a opção de convidar um hóspede para compartilhá-lo. Hoje, por volta de 70 pessoas habitam o local.

Com dez andares, o edifício se camufla entre tantos outros no Centro (Foto: Daniel Quandt)
Com dez andares, o edifício se camufla entre tantos outros no Centro (Foto: Daniel Quandt)
Administração coletiva

O processo seletivo para decidir quem pode morar lá, administrado pela diretoria da Casa, que é eleita e constituída por moradores, leva em conta os mesmos critérios socioeconômicos do SAS (Superintendência de Assistência Social), e busca, ao mesmo tempo, evitar seus entraves burocráticos.

Para tal, o processo considera cada caso individualmente. “Às vezes a pessoa parece que tem dinheiro, mas tem algum problema de saúde, então gasta muito com remédio, ou tem que bancar alguém”, explica Giovana Izidoro, moradora desde 2011.

Essa flexibilidade é um dos motivos que fez com que os moradores optassem por manter a autogestão, mesmo nos momentos mais difíceis. A direção chegou a pedir ajuda institucional da USP para custear a Casa, mas o SAS (então Coseas) estabeleceu condições que eles consideravam inaceitáveis. “Eles queriam colocar nove pessoas em cada quarto em que hoje moram uma ou duas”, conta André Leal, mestrando da São Francisco e morador desde 2007. Além disso, seria exigido que a grande maioria das vagas fosse aberta para todos os cursos, restando apenas uma pequena parcela para os alunos da San Fran.

O letreiro sobre a porta é uma de suas poucas partes intactas (Foto: Daniel Quandt)
O letreiro sobre a porta é uma de suas poucas partes intactas (Foto: Daniel Quandt)
Finanças em risco

Assim, a verba da Casa vem hoje do aluguel de dois espaços comerciais no térreo e do repasse mensal do Fundo do XI de Agosto, que consiste de quase 6 milhões de reais, cujo rendimento mensal financia todas as entidades estudantis franciscanas – entre elas, o próprio Centro Acadêmico, que recebe 50% do repasse, e a Atlética, que recebe 25%. As demais entidades, que são mais de vinte e incluem a Casa do Estudante e o DJ, que presta serviços jurídicos gratuitamente, dividem o restante.

O resultado é que a Casa acaba recebendo cerca de R$3.400 por mês – de acordo com Clineu de Andrade, um dos diretores, o valor não é suficiente nem para pagar a conta de luz, e isso quando é pago: o repasse de 2013 só está sendo feito agora, com a aprovação do saque de cerca de R$500.000 do Fundo para pagamento de dívidas, dos quais R$47.000 são destinados à quitação com a Casa. Para complementar o orçamento, a taxa mensal de R$50 por residente e R$70 por hóspede, inicialmente simbólica, hoje é parte essencial de sua manutenção financeira.

A falta de recursos dificulta os planos dos residentes de consertar os inúmeros problemas presentes no edifício, pois os gastos mensais são retirados do fundo que seria destinado à reforma do prédio. Sem comprovantes de que a reforma foi realizada, a próxima parcela do dinheiro fica inacessível; sem dinheiro, não é possível fazer a reforma.

A porta, remendada com fita, ilustra a situação da Casa (Foto: Daniel Quandt)
A porta, remendada com fita, ilustra a situação da Casa (Foto: Daniel Quandt)
Caindo aos pedaços

Os problemas estruturais, amenizados desde 2008, quando a Casa recebeu o primeiro repasse do Fundo do XI, ainda não são poucos: o esgoto entope pelo menos uma vez por ano, exigindo grande investimento para limpá-lo; a estrutura das paredes e tetos está se despedaçando, revelando o interior dos forros; a cozinha está deteriorada a ponto de ser inútil, obrigando os alunos a improvisarem dentro dos apartamentos; os elevadores, que parecem modernos, se comportam de maneira errática e necessitam de troca de peças; os serviços de telefone e internet são instalados na gambiarra, externamente; a fiação elétrica está exposta por todo o prédio, inclusive os fios de alta tensão no térreo; e pestes como ratos, baratas e percevejos são comuns.

Estes dois últimos pontos citados, aliás, protagonizaram uma situação inusitada e perturbadora para os moradores: “Um rato morreu eletrocutado nos fios de alta tensão, e o corpo dele ficou muito tempo ali sem a gente poder tirar. Só depois que ele apodreceu e caiu que conseguimos”, conta Abrahan Lincoln, com a naturalidade de quem já presenciou todo tipo de coisa na Casa desde que veio da Bahia para estudar Direito na USP, no ano passado.

Quanto aos apartamentos, cada um tem o seu problema. Uma residente teve um incêndio elétrico em seu banheiro ao ligar o chuveiro, e como já aconteceu com muitos outros, o forro do seu teto desabou. Outro lida com percevejos que o acompanham em suas roupas e colchões. Já houve assaltos e arrombamentos dentro do prédio, que não conta com porteiro ou segurança. Apesar dos quartos e banheiros espaçosos, a área comum entre eles é muito pequena e cozinhar não é nada prático, e o ruído e poluição vindos do Minhocão são fonte de irritação constante para todos os moradores.

“Seu” Pedro, zelador e faz-tudo do edifício há 6 anos (Foto: Daniel Quandt)
“Seu” Pedro, zelador e faz-tudo do edifício há 6 anos (Foto: Daniel Quandt)
Ponto alto

Mesmo assim, a Casa do Estudante vem atraindo cada vez mais alunos que precisam de moradia para se manter na São Francisco – apesar dos inúmeros problemas, a situação já foi pior. Para André Leal, que já foi diretor-presidente no passado, o momento atual é o melhor dos oito anos em que ele morou no edifício.

A desratização, apesar de já estar expirando, conteve o problema dos ratos que chegaram a roer barras de ferro e tijolos. Os elevadores, que ficaram anos desativados, agora funcionam, ainda que não muito bem. Foi instituída a coleta de lixo, amenizando a deficiência sanitária do prédio, e medidas foram tomadas para garantir que só quem realmente precisa more na Casa.

O futuro da Casa

Ainda assim, os moradores cobram mais envolvimento do Centro Acadêmico XI de Agosto e da própria São Francisco, ressaltando a insuficiência do repasse e a falta de clareza quanto à distribuição de verbas, além da ausência de apoio institucional. “A permanência estudantil vai além da moradia. Esse é um debate que transcende a redivisão de verbas do Fundo do XI, é um debate que precisa ser feito pela a faculdade”, aponta Clineu de Andrade. “Não temos ambulatório, assistência social nem psicológica. A depender da demanda no próximo ano, a Casa não comportará os novos alunos que dependem de permanência estudantil no centro da cidade.”

A Faculdade de Direito reservou, para o ano que vem, 92 vagas para alunos de escola pública pelo sistema Sisu, aberto a todo o país.

Por Daniel Quandt