Isto não é brincadeira.

Adultização das crianças torna-se cada vez mais comum e expõe problemas sociais
Ilustração: Arthur Aleixo
Ilustração: Arthur Aleixo

Recentemente, o programa Masterchef Júnior, da Band, estreou na televisão brasileira regado de muita polêmica. Além de reerguer a discussão em torno da infância, o reality show, que conta com pequenos chefs de cozinha de 9 a 13 anos, repercutiu grandemente na internet devido às ofensas sofridas por dois dos participantes, logo no primeiro episódio do programa.

Valentina, de 12 anos, foi vítima de pedófilos nas redes sociais, assim como Hytalo, de 11, recebeu comentários homofóbicos. Duas crianças foram, mais uma vez, sexualizadas pelos maldosos de plantão.

Sim, mais uma vez. Infelizmente esse tipo de coisa não é incomum. É fácil puxar na memória casos como o de Melody e tantos outros MCs que são inseridos numa realidade muito mais sexualizada do que o ideal para uma criança. A sexualização de crianças leva a uma cultura de desejo pelo corpo infantil. Uma prova disso é que o termo “novinha” foi o mais procurado no Brasil em site de pornografia no ano de 2014. O mesmo acontece em vários outros países em que o termo “teen” (adolescente) é o mais pesquisado. Vale lembrar que, além de absurdo, pornografia envolvendo crianças ou adolescentes é crime no Brasil, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Essa cultura acaba levando aos muitos casos que conhecemos de violência sexual contra crianças. Se não conhece nenhum, é só digitar #PrimeiroAssédio nas redes sociais para se deparar com milhares de relatos chocantes a respeito desse tipo de violência. A campanha, iniciada pelo coletivo feminista Think Olga, teve inicio depois do caso de Valentina e a quantidade de relatos só enfatiza como a sexualização do corpo infantil vem se tornando cada vez mais “natural” e enraizada na nossa sociedade. E isso é sintoma de uma sociedade doente.

Ao enxergar crianças como adultos, infâncias são arrancadas. A sexualização dos pequenos não é, porém, a única forma de tentar “adultificá-los”.

É trabalho ou não é?

Matheus tem 9 anos. Cerca de oito horas de cada um de seus dias são passadas brincando. Dentre as atividades que ele mais gosta estão jogar futebol, assistir desenhos na televisão e jogar videogame. Suas principais responsabilidades são as atividades da escola. Normal como qualquer outra criança, não? Infelizmente, muitos pequenos passam por realidade bem diferentes, com responsabilidades muito maiores.

E isso nem diz respeito às crianças que trabalham em lavouras ou carvoarias. Sobre isso, o absurdo já está escancarado. O assunto agora é um trabalho mais velado, tratado como natural, ainda que menos desgastante. Afinal, atuar, apresentar programas televisivos, ser atleta de alto nível ou modelo é trabalho, não é? Mas e quando esse ator, apresentador, atleta ou modelo é uma criança?

A desculpa para que esse tipo de trabalho continue ocorrendo geralmente é a mesma: “mas ele dá conta de conciliar com os estudos”. E a brincadeira, também é possível conciliar? Geralmente não. Uma criança que associa trabalho e estudo comumente tem pouco tempo para se divertir, e acaba perdendo uma função muito importante para o desenvolvimento humano, que é o ato de brincar.

A psicóloga Michele Cassiano explica que brincar constrói todo um processo de desenvolvimento nas crianças. Isso ocorre em diversos âmbitos, como o físico, emocional, cognitivo, social e intelectual, além de trabalhar questões como auto estima, auto confiança, limites, regas e valores. Outra questão positiva da brincadeira apontada pela psicóloga é o ensaio de papeis que o indivíduo vai realizar ao longo da vida. “Brincar é desenvolver repertório; através da brincadeira que a criança aprende milhões de coisas. Portanto, brincar é fundamental e extremamente importante para o desenvolvimento de um ser humano”, conta Michele.  

Para as crianças que trabalham, além de perder esse desenvolvimento relacionado com a brincadeira, há toda uma questão psicológica, sobretudo as que atuam com competições. Reality shows e esportes lidam com esse tipo de situação, forçando uma pressão sobre os pequenos. A ginasta olímpica Flávia Saraiva, por exemplo, já competia internacionalmente aos 12 anos. Toda a pressão psicológica de um torneio internacional caia sobre uma criança.

Os reality shows, embora com duração menor do que uma vida no esporte, levam essa pressão psicológica num nível mais alto. Isso porque os competidores podem ser mais novos. Ivana, de 9 anos, participante do Masterchef Júnior, passou o segundo episódio do programa quase que inteiro em um nível altíssimo de stress. Devido ao tempo de prova que chegava ao fim e às empanadas de Ivana que insistiam em dar trabalho ao serem executadas, a garota chorou e se desesperou. Mais uma vez, uma pressão desnecessária sendo colocada sobre uma criança.

E isso não é exclusividade do Masterchef; o desespero infantil pode ser detectado em diversos outros reality shows, como Ídolos Kids ou, ainda pior, Pequenas Misses, que mostra a realidade dos concursos de beleza infantis. Nesse último, meninas de 2 anos já participam e sofrem, além da “adultificação” em roupas, unhas, cabelo e maquiagem, uma pressão completamente desproporcional para a idade.

Segundo Michele, esse tipo de pressão é muito prejudicial para o desenvolvimento infantil, justamente por não fazer parte do mundo das crianças, fazendo com que essas, portanto, não saibam lidar com isso. A psicóloga explica que isso pode gerar situações muito ruins para os pequenos, como insegurança e baixas auto estima e auto confiança. “É uma frustração, uma expectativa dos adultos – dos pais, no caso – que vão jogar sobre a  criança aquilo que eles talvez um dia gostariam de terem realizado”.

Muitos pais e mães, porém, usam da justificativa de que tudo está sendo realizado em prol da felicidade da criança, afinal este é o sonho de vida dela. Por menor que sejam as crianças, essa explicação é muito comum. Mas Michele mostra que o que é chamado de sonho pelas crianças e pais é, na verdade, uma construção social que vem, sobretudo, de influência familiar. Então, por exemplo, se a família valoriza muito a televisão e as novelas, a criança pode dizer que ser atriz é o sonho dela; mas é tudo uma construção. “Isso foi construído, a criança não nasce com um sonho profissional”, diz a psicóloga.

E a lei com isso?

É sabido que, no Brasil, é proibido trabalhar quando se tem menos de 14 anos.  Mas não é o que se vê; modelos, atletas e atores mirins existem aos montes. O que existe, atualmente, é uma situação de indefinição jurídica, onde os menores de 14 anos que exercem essas atividades não tem contrato formal de trabalho.

No último dia 06, porém, a Comissão de Educação, Cultura e Esporte aprovou o projeto de lei do senado que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente quanto a isso. Se aprovada, a proposta, que segue para votação final na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa , permitirá que crianças e adolescentes atuem como atores, modelos ou atletas, desde que haja autorização dos responsáveis. No caso dos menores de 14 anos, os pais ou responsáveis deverão acompanhar os pequenos nas atividades; na ausência desses, será exigida autorização judicial específica.

Ainda que essa mudança na lei possa ajudar esse tipo de trabalho infantil, exigindo a participação dos responsáveis, ela regula essa função, permitindo que esta ocorra. Ou seja, jovens crianças continuarão a trabalhar, seja como ator, modelo ou atleta, a viver com a pressão diária e a perder a infância e o ato de brincar, tão importantes para o desenvolvimento.

Não é trabalho, mas a responsabilidade é grande

Mais comum ainda do que as crianças que trabalham, são as crianças que possuem muitas atividades extracurriculares, diversas vezes em excesso. Escola, aula de língua, música, teatro, esporte, mais uma língua, outro esporte…ufa! Será que uma criança é capaz de dar conta disso tudo e, ainda assim, ser uma criança?

Na maioria dos casos, a resposta é não. Os pequenos ficam esgotados, cheios de responsabilidades e acabam sofrendo de um stress que não condiz com a idade. Michele explica que a pressão, a cobrança, a rotina e o stress fazem com que esse tipo de atividade em excesso se assemelhe ao trabalho infantil. A psicóloga diz que o ideal é que a própria criança escolha quais atividades fazer e que estas não ocupem todo o tempo livre; é preciso ter um espaço para ao lazer.

Por Dimítria Coutinho