A reforma do Ensino Médio é uma incerteza

Uspianos têm dúvidas sobre objetivos da reforma; ex-ministro critica medida que instituiu mudanças
Foto: Felipe Saturnino
Foto: Felipe Saturnino

O governo Michel Temer editou a Medida Provisória 746 para realizar a reforma do ensino médio no dia 22 de setembro. Para alguns especialistas em educação da USP, como Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, e Reynaldo Fernandes, ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira), a mudança na etapa média do ensino básico gera incerteza. Segundo ambos, não há a garantia de que alunos vão poder escolher entre todos os campos de conhecimento, pois as escolas estão desobrigadas a oferecer as cinco formações (linguagens, matemática, ciências naturais, ciências humanas e formação técnica).

Um agravante foi a forma de implementação das mudanças, através de Medida Provisória (MP), sem ampla discussão com a sociedade e movimentos da educação. “A MP impediu o debate e também foi ruim porque era um dos raros casos em que o Congresso tinha uma comissão especial para tratar do assunto”, afirma Janine.

“A reforma não ficou clara”, diz Fernandes, docente da Faculdade de Economia e Administração de Ribeirão Preto (FEA-RP). O texto da MP prevê o aumento progressivo da carga horária para 1400 horas anuais (a meta é chegar ao ensino integral), a reformulação do currículo e a opção de o aluno escolher entre cinco formações após cursar um ano e meio de matérias obrigatórias.

Segundo Fernandes, a proposta é errática, tanto nas alterações quanto nos objetivos. “Uma dúvida é que nós não sabemos o que será de comum no currículo”, afirma ele, já que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de acordo com o MEC, estará pronta apenas em 2017. Sem a BNCC, não é possível saber se matérias como Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física continuarão vigentes.

Pela má repercussão do público, o governo Temer incluiu na MP, no dia 23 de setembro, a permanência das disciplinas até ao menos o segundo ano posterior à definição da Base. A medida tem valor imediato e as suas disposições legais entraram em vigor logo após sua publicação, mas deve ser votada em até 120 dias no Congresso para que não seja descartada. “Agora, essa indefinição mata”, diz a vice-coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Políticas Públicas (NUPPs/USP) e professora, Elizabeth Balbachevsky. “Mas eu não sou a favor de encher a área básica de disciplinas. Eu acho que a sociologia e as artes tem todas a condições de lutar pelo seu público”.

Forma e conteúdo

A evasão foi uma das razões apresentadas pelo governo para implementar o ensino integral, mas, para Fernandes, a elevação da carga horária talvez não seja a cura. “A evasão está no atraso, no repetente, então, como aumentar horas na escola vai diminuí-la?”, indaga.

A possibilidade de alunos optarem por determinadas disciplinas em seu currículo também pode ser tiro pela culatra caso a secretaria estadual de educação não ofereça todas as alternativas. Pelo conteúdo da MP, as mudanças serão aplicadas a nível estadual e as escolas serão obrigadas a oferecer o mínimo de dois campos. “Quem vai decidir pela disciplina, afinal, será o aluno ou o secretário estadual de educação?”, diz.

Ministro da Educação de Dilma Rousseff durante cinco meses em 2015, Renato Janine Ribeiro afirma que não haverá tantas alternativas como o governo assegura. “Das cinco opções de campo, a escola talvez forneça uma ou duas, e isto pode ser um problema”, sugere.

Para Janine Ribeiro, a MP decorre de um governo que busca acelerar as coisas sem fazer emendas constitucionais, votadas em dois turnos nas duas casas do Congresso e aprovadas em caso de obtenção de três quintos de votos de deputados e senadores. Na última quinta-feira, 29, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edison Fachin, demandou explicações ao presidente acerca da medida após entrada de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) feita pelo PSOL. Agora, Temer tem até 9 de outubro para remeter resposta ao plenário da Suprema Corte explicando a decisão tomada.

Discordante do ex-ministro, Balbachevsky crê que o uso de medida do tipo não é negativo nem impede o debate ou contribuições da sociedade. “Apenas coloca um prazo para isso acontecer”, afirma. “Com a adoção deste formato, o MEC consegue que essa discussão aconteça agora e termine em tempo hábil para que seja implementada com a urgência que tem.”

Quando se especializar

Vinicius Soares de Oliveira, estudante do 5º ano de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), confessa a frustração de perder possíveis locais de trabalho. Segundo ele, professores formados em Filosofia, Sociologia ou Educação Física sentem o mesmo pelas alterações no ensino médio, antecipando a permissão que a MP cede para pessoas lecionarem em área em que não possuem diploma.

“Ainda assim, existe consenso de que a reforma deva existir, e ela vai ao encontro de que o aluno deve ter mais liberdade”, diz Soares. Embora a MP 746 seja considerada flexibilizadora e atribuidora de autonomia ao estudante, para ele isto pode significar uma especialização precoce. “Numa nação, cidade ou sociedade, a gente perde muito se conhecimentos sociológicos ou filosóficos não existem na vida das pessoas”, argumenta. Isto, para Fernandes, é a dicussão real por que passa a reforma: o momento em que se inicia a especialização do aluno. “E acho que ela não deva ocorrer muito cedo”, observa.

O ideal e os defeitos

O ensino integral é outro componente importante na apresentação e discussão da proposta. “De modo geral, pessoas que lidam com educação são favoráveis a ele”, diz Janine Ribeiro. Por outro lado, o professor de Ética e Filosofia da USP julga que as estruturas das escolas não são capazes de suportar a carga horária decorrente, necessitando de investimentos para a execução da ideia. “Ensino integral é um ideal a ser perseguido, mas exige dinheiro para existir”, explica Fernandes.

Para Balbachevsky, no geral, o projeto editado oferece boas respostas para autonomia, liberdade do aluno e formação técnica para a possibilidade de que o estudante inclua, em sua grade, “a aquisição de habilidades específicas que lhe permitirão entrar para o mercado de trabalho com uma especialização”. Para Janine Ribeiro, a reforma não é toda ruim, mas tem uma série de defeitos. “O que eu digo mesmo”, afirma o ex-ministro, “é que é melhor discutir isto do que o Escola Sem Partido”.

Formação ampla ou vestibular

Embora divergentes sobre a forma de implementação e as propostas da reforma, as fontes desta reportagem concordam que uma alteração no ensino médio é necessária.

Os problemas desta etapa do ensino básico, para Janine Ribeiro, vão da mudança na estrutura do currículo até ao aumento de salários a professores. Em sua opinião, os estudantes não são atraídos pelas disciplinas regulares e os docentes não possuem boa formação nem são motivados a dar aula em razão dos baixos salários, restando um impasse nas duas pontas da educação, o ensino e a aprendizagem. Segundo o MEC, o piso salarial nacional dos professores, calculado pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) no último ano foi elevado em 13,01% atingindo R$ 1.917,78.

“Também é preciso que o aluno saia desta fase do ensino básico com uma formação completa, e que o ensino médio não seja um pré-vestibular”, enfatiza. O currículo do ensino médio, diz ele, não pode estar voltado para outra coisa a não ser para si próprio.

Soares, enquanto discente e professor que lecionou por dois anos da rede de ensino privado, observa que esse ideal de formação ampla, contemplando diversas áreas de conhecimento, fica de escanteio com o prazo mínimo de grade curricular regular ou obrigatória estipulado na reforma. “Em um ano e meio de disciplinas obrigatórias, eu creio que nem poderia ser ensinado o básico de história”, prevê.