A criminalização do aborto mata as mulheres

(Arte: Regina Santana)

O USP Talks, série de palestras que buscam a aproximação da universidade com sociedade a partir da exposição de temas atuais, promoveu, no último dia 26 de abril, um encontro entre a médica sanitarista Ana Maria Costa e o advogado Leonardo Massud para discutir o aborto induzido no Brasil. Durante o evento, realizado em parceria com o Estadão e a Faculdade Cásper Líbero,  os dois especialistas defenderam a descriminalização do aborto, tratado o assunto como um problema de saúde pública e cidadania.O Brasil vive um contexto no qual as reflexões a respeito do aborto voltaram à cena política nacional, já que, no começo de março deste ano, o Psol, Partido Socialismo e Liberdade, em parceria com o Instituto de Bioética, Anis, protocolou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que pede a descriminalização da prática até a 12ª semana de gravidez.

Durante sua fala no evento, Ana Maria Costa, diretora-executiva do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) e professora da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), esclareceu que, apesar de a prática abortiva estar presente em todos os níveis da sociedade, não há equidade na forma como ela ocorre. Enquanto as mulheres com mais recursos financeiros podem buscar atendimento seguro em clínicas especializadas, ainda que clandestinas, aquelas em situação de vulnerabilidade social e econômica realizam o aborto de forma precária, arriscando sua saúde e, muitas vezes, a vida. Costa lembrou que na taxa de mortalidade materna, que considera o número de mulheres mortas em função de gravidez, parto e puerpério – período entre o parto e o momento em que o estado geral da mulher volta às condições anteriores da gestação – a principal causa é a eclâmpsia, complicação grave na qual há episódios repetidos de convulsões relacionadas à hipertensão arterial, seguida em segundo e terceiro lugares por hemorragias e infecções, estas duas últimas comumente identificadas como resultados de abortos provocados. Estes dados ajudam a demonstrar a relevância da prática como questão de saúde pública e cidadania.

Ana Luiza Borges, professora da Escola de Enfermagem da USP, enfatiza que “tanto estudos nacionais quanto internacionais são claros ao reportarem as consequências negativas que a restrição ao aborto induzido trazem, não só para as mulheres, mas para toda a sociedade”. Ela destaca também que, ainda que o Sistema Único de Saúde (SUS) conte desde de 2011 com o Manual de Atenção Humanizada ao Abortamento, que apresenta as diretrizes determinadas pelo Ministério da Saúde a serem seguidas nesse tipo de caso, “a atenção ao abortamento permanece envolta em estigma, negligências e discriminação, acarretando outras cicatrizes que não apenas de ordem biológica entre as mulheres”.

Julgamento e punição

O artigo 124º do Código Penal Brasileiro prevê pena de prisão de um até três anos para mulheres que provoquem o aborto ou consintam que ele aconteça. Leonardo Massud, professor de direito penal da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), expôs durante o USP Talks a opinião de que, em última análise, a decisão de abortar ou não deve caber à mulher e que criminalizar a prática é “utilizar um remédio que mata o doente” já que não é incomum abortos clandestinos ocasionarem a morte da gestante.

Em nota oficial, José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da Human Rights Watch, organização internacional voltada à promoção dos direitos humanos, declara que “as sanções penais para o aborto negam às mulheres e meninas grávidas o direito de tomar decisões profundamente pessoais sobre sua saúde e vida, e ameaçam uma ampla gama de direitos humanos”.

Os únicos cenários em que a legislação autoriza o aborto no Brasil são quando a gravidez decorre de estupro, se ficar comprovada a anencefalia do feto ou quando há risco de vida para a gestante. Mesmo nestes casos, há dificuldade na realização do procedimento, assim como retrocessos legais que atrapalham a consolidação do direito. O Projeto de Lei 5.069 de 2013, por exemplo, cujo autor é o ex-parlamentar, atualmente preso por corrupção, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi aprovado em 2016 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. O texto torna mais difícil a realização do aborto em casos de estupro e institui pena a quem orientar a vítima a respeito das possibilidades legais de interrupção da gravidez. Para Eva Alterman Blay, coordenadora do USP Mulheres, “os seres humanos, independentemente da condição de gênero, devem receber todas as informações disponíveis. Nos sistemas autoritários se proibia o saber e se controlava sua difusão. Os termos do citado projeto de lei é um retorno à obscuridade e à desumanização das mulheres”.

Frequentemente, ao se discutir a descriminalização do aborto, são apresentados argumentos no sentido da defesa do feto como sujeito vulnerável. Ana Maria Costa expôs a sua perspectiva de que o conceito de pessoa pressupõe a autonomia de viver fora do útero. Para ela, o entendimento de que gestante e feto são duas pessoas é equivocado. “O feto não pode ser denominado uma pessoa porque não tem autonomia de sobrevivência, enquanto as mulheres, sim”.

Consequências da descriminalização

Dados apresentados em 2016 pelo Instituto Guttmacher, voltado para a pesquisa na área de reprodução humana, indicam que países onde há leis de criminalização do aborto não tem menores índices de abortamento induzido. Enquanto a proporção da prática em países com leis mais flexíveis para o tema é de 34 para 1000 mulheres, nos lugares onde terminar a gravidez de forma voluntária é totalmente proibido ou permitido apenas para salvar a vida da mãe, a proporção é de 37 para 1000 mulheres.

Na América Latina, o caso do Uruguai é emblemático. Relatório divulgado em 2015 pelo Ministério da Saúde do país já indicava um aumento de 30% no número de mulheres que solicitaram o abortamento e posteriormente mudaram de ideia e decidiram seguir com a gravidez.