Novo capítulo na polêmica sobre arte

Religião, patriarcado e puritanismo  reforçam os estigmas negativos da nudez

(Foto: Claire Castelano)

Por Rafael Castino

Nu. O vídeo de uma criança encostando no pé de um homem deitado sem roupas, durante performance artística no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) no dia 26 de setembro, gerou grande polêmica nas últimas semanas. Manifestações pró e contra a cena dissiparam-se nas redes sociais — cidadãos e instituições lançaram mão de argumentos defendendo e atacando o artista Wagner Schwartz, responsável pela apresentação.

O toque infantil no artista nu foi desconfortável ao ponto de parte da população buscar argumentos relacionados à pedofilia para impedir ou tentar vingar a nudez que foi apresentada durante poucos minutos.

O ápice se deu com a disseminação da notícia falsa que Schwartz havia sido morto a pauladas. A partir dos comentários feitos acerca da mentira difundida e da exposição, evidencia-se a polêmica, o tabu e a intolerância que envolvem o tema da nudez no Brasil, país no qual se acessa conteúdos com homens e mulheres nuas em um clique, mas questiona-se aparições públicas de pessoas despidas.

“Na Grécia Antiga, o nu era visto próximo da beleza e da perfeição física”, afirma a professora Adriana Vilano Dinamarco, mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Na arte da época — a nudez heroica — deuses, deusas e cidadãos comuns eram muitas vezes representados sem vestimentas. Não havia vergonha pública da nudez, que chegava a ser comum até mesmo nas competições esportivas mais famosas — os jogos olímpicos.

“Após a introdução das religiões, como o cristianismo, oriundo do judaísmo,  a nudez passa a ser associada a algo referente aos miseráveis. Normalmente, eram pobres e escravos que andavam despidos”, afirma Adriana. “O nu passa a ser comparado à vergonha, herdada por uma crença que vê o corpo sem roupas como algo mísero”.

A nudez como sinônimo de miséria induzida pela religião é confirmada em uma passagem bíblica. Em Apocalipse, capítulo 3, versículo 17, um homem de bens é parafraseado  como se usando a sentença “como dizes: rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu;”.

Segundo Adriana, existem outras vertentes que ajudam a entender o tabu do nu: uma delas é imaginar o corpo como um segredo. Para a pesquisadora, a roupa cobre algo que é velado, e desnudar alguém significa trazer à tona aquilo que está escondido, e que, de certa forma, é guardado.

“A erotização está relacionada ao desejo da descoberta. É naquilo que não está à mostra, ou que é proibido, que normalmente moram as fantasias dos seres humanos”, completa.

Tomando como referência estudos da psicóloga, a nudez encontra-se no espaço conhecido como excesso do real. Estar sem roupas representa romper qualquer tipo de fantasia, mostrando que um corpo despido não passa de um mero corpo — e tal constatação é responsável por chocar e gerar diversas polêmicas. A quebra das expectativas e idealizações incomoda a sociedade moderna.

O masculino e o feminino

No início do ano de 2017, o programa ‘Amor e Sexo’, da Rede Globo, exibiu durante poucos segundos um nu frontal masculino. No dia seguinte à atração, comentários na página da emissora e matérias em blogs e sites sobre televisão repercutiram a aparição de maneira negativa. Mesmo com a classificação etária indicada corretamente, a cena foi vista como apelativa e desnecessária, incomodando muitos telespectadores.

Segundo estudo feito pela Universidade de Mount Saint Mary, em Los Angeles, a nudez feminina é três vezes mais explorada no cinema em relação à masculina. Conforme a pesquisa indica,  26% das mulheres entre os 100 filmes mais vistos do ano de 2014 nos Estados Unidos apareciam nuas ou seminuas. Os homens, na mesma condição, surgiam em apenas 9% dos longas.  

Na visão de Adriana, a evidente diferença confirma-se pelo fato do nu feminino ser “muito bem aceito” no meio social. Complementando, quando perguntada sobre a performance no MAM, em sua resposta, a pesquisadora diz acreditar que se fosse uma artista não haveria tanta polêmica em torno do assunto. A culpa é, a princípio, de uma sociedade patriarcal — que pode ser enxergada também como machista.

“Em nosso meio, o nu feminino está ligado a uma objetificação da sexualidade, que é aceita socialmente e pode ser comparada à fragilidade. O nu masculino relaciona-se à potência, ao agressor.”

Cultivando um tabu

Para Adriana, o tabu nasce de uma vergonha que é criada socialmente através de conceitos morais de uma população. Atualmente, no país, baseando-se nas religiões predominantes  — que tomam o corpo como algo impuro, que não deve ser mostrado — e em um patriarcado que vê a mulher como frágil e o homem como agressor, a nudez vira algo impróprio. Estar despido é estar errado.

Surgem limites para liberdade, a arte e o cotidiano. O teto da Capela Sistina — obra sacra concebida por Michelangelo entre 1508 e 1512 — apresenta cenas de nudez em um ambiente religioso. O argumento artístico de exibição da beleza do criador que carrega as pinturas garante o distanciamento da polêmica para os quatro tipos de representação da nudez na arte cristã —  o nuditas naturalis, o nuditas temporalis, o nuditas virtualis e o nuditas criminalis — simbolizando respectivamente o estado natural da humanidade, a pobreza, a pureza e inocência, e o horror das vaidades.

Chegando ao cotidiano, dados divulgados por um famoso site de conteúdo adulto — o PornHub — mostram o Brasil como 8º país do mundo onde mais se consome pornografia. Em território nacional, a nudez, ao sair da tela do computador, torna-se agressiva.

Como apontado por Adriana anteriormente, o meio digital junto ao  seu acesso restrito guardam a ânsia pela desmistificação de um segredo. A partir do momento que o nu surge no horário nobre da televisão, sem buscas prévias por um mistério, este é tomado como injurioso.

Protestos nacionais nos últimos dias provaram que a  aproximação da nudez com o material ainda incomoda. A partir do momento que o nu sai de esculturas e telas — de pinturas e notebooks, chegando a performances em museus e televisões, a polêmica nasce. Para a pesquisadora, isso ocorre pois atravessar a fronteira do excesso do real é mexer com pessoas que têm uma ferocidade adormecida e disposição para gastar o tempo com declarações absurdas ––tudo em prol de uma ideologia puritana.

Em decorrência das polêmicas, o MAM emitiu uma nota em suas redes sociais esclarecendo a performance La Betê, do artista Wagner Schwartz. No texto, ressaltou-se as indicações prévias feitas no Museu, lamentando interpretações açodadas e manifestações de ódio e de intimidação à liberdade de expressão que apareceram na Internet. A mesma apresentação havia sido feita no Instituto Goethe, em Salvador, nos dias 19 e 20 de Agosto, sem grande repercussão.