A greve ficou velha

Por que a paralisação protocolar a cada dois anos parou de funcionar

 

A forma como nos mobilizamos precisa mudar. (Foto: Marcella Affonso/Jornal do Campus)

Por Laura Castanho

Uma amiga minha faz uma optativa de poesia com um professor temporário americano — um cara de trinta e poucos anos, e portanto jovem demais para ter visto a atuação dos sindicatos no seu país de origem. Quando soube que seu departamento na USP entraria em greve, ficou deslumbrado. Riu e soltou: “É como se vocês vivessem no passado!”

A brincadeira tem um fundo de verdade. Com ajustes aqui e ali, o modelo de greve adotado pelas três categorias da USP — professores, funcionários e estudantes — segue mais ou menos o mesmo desde o século XIX, quando nasceu e virou rotina da classe operária europeia.

No Brasil, os primeiros registros de estudantes grevistas datam da era Vargas. A receita não mudou muito desde então: é companheiro para cá, companheiro para lá, assembleias convocadas e esvaziadas estrategicamente.

A greve tanto é previsível que, da última vez que paramos, cheguei a fazer um bingo com meu padrasto, ex-militante do PCB. Sempre que eu voltava de uma assembleia, lhe dizia o resultado e ele adivinhava o que viria a acontecer em seguida. Em quase três meses de paralisação, não errou uma vez. Seria divertido se não fosse ruim: quem já se envolveu com militância sabe que a previsibilidade mata as chances de qualquer mobilização ganhar corpo e atingir seus objetivos.

Esse é o problema central da greve de 2018: não a greve em si, mas que sabemos exatamente como ela vai terminar. Sabemos que ela irá durar até as férias de julho e acabar sem alarde. Sabemos que os alunos — alguns dos quais nunca pararam — irão entregar seus trabalhos finais por e-mail, feitos de casa, sem comprometer a nota do semestre.

Sabemos que os professores — já de volta à ativa — irão aceitá-los e corrigi-los, também de casa. Sabemos que o Sintusp (Sindicato de Trabalhadores da USP) irá sentar com a Reitoria para negociar um aumento menor do que o reivindicado inicialmente — e que essa diferença, por sua vez, irá abrir um precedente para a próxima greve, daqui a dois anos. Sabemos de tudo isso e optamos por tomar a decisão protocolar de sempre, por inércia, desconexão da realidade ou preguiça de imaginar algo melhor.

Evidente que concordo com o conteúdo das pautas reivindicadas pelos grevistas. Difícil não concordar que os funcionários devem ganhar aumentos proporcionais à inflação; que os professores devem contar com plano de carreira e estrutura decente para lecionar e pesquisar; que R$ 400 mensais são um valor vergonhoso de bolsa para o aluno que precisa se dedicar integralmente ao curso.

No entanto, a forma de demandar tudo isso pode, deve e merece ser questionada — e, na medida do possível, aprimorada ou substituída por algo mais eficaz. Paralisar a cada dois anos não tem cumprido esse papel.

Do contrário: tem feito gente que mal entrou na USP perder a confiança nos mecanismos de deliberação, e quem já está há algum tempo ignorar o revival habitual das mesmas pautas de sempre.

Sintoma disso é o modelo de deliberação por assembleia, que perdeu sua maior vantagem: a representatividade. Dos 5844 docentes da USP, cerca de 80 estavam presentes na assembleia que deliberou paralisação da categoria — isso não na conta de algum órgão oficial, mas da própria Adusp (Associação de Docentes da USP).

O Sintusp, responsável por representar 14.867 funcionários, tampouco estava cheio quando decidiu parar, conforme mostram os vídeos que seus integrantes registraram da ocasião. (Agora, convenhamos: que esperar de um sindicato que tem o mesmo diretor há 39 anos?)

São métodos aparentemente democráticos, mas cujos resultados não representam a maioria. Essa última frase não é minha, mas de uma professora logo após uma assembleia de curso, cuja militância começou nos anos 80 e foi vencida pelo cansaço. Caso se tratasse uma ocasião pontual da chamada pelegagem, ótimo: bastava estudantes, professores e funcionários irem às deliberações. Mas não é o caso.

Assim como não o foi em 2016, que contava com as condições ideais para dar certo — começar cedo no ano letivo, ampla mobilização inicial, pautas relevantes nas três categorias — e mesmo assim acabou como todas as outras. Assim como em 2014, e 2013, e 2011, ainda que com graus diferentes de participação e conflito. A questão é: a greve, do modo como é replicada a cada dois anos, está fadada a morrer na praia.

Como chegamos aqui? Para Gislene Lacerda, historiadora especializada em movimento estudantil com quem conversei, a ausência de mobilização é reflexo de dois contextos maiores. Primeiro, uma crise de identidade nos movimentos sociais após mais de uma década de espaço central no governo. Segundo, uma crise de representação dos centros acadêmicos, associações e sindicatos com entrada na universidade, no qual as pessoas não se veem mais nos seus respectivos órgãos.

No caso específico dos estudantes, esse distanciamento coincide com o início da divisão do movimento, em 1979, logo que os partidos voltaram à legalidade. Na contramão do resto da sociedade — que naquela época já falava em crise das instituições — os movimentos sociais passaram a supervalorizar a organização partidária, e isso os enfraqueceu.  

“Antes, o movimento estudantil era formado por chapas que reuniam tendências suprapartidárias. Com passar do tempo, [a organização] intensificou tanto que o partido tomou o movimento”, explicou a historiadora.

O ritual da assembleia — “quase uma missa”, brinca Gislene — está igualmente engessado. Nem os smartphones e as redes sociais conseguiram fazer com que as plenárias durassem menos de três horas, com pelo menos duas dedicadas a disputas internas. É uma cerimônia bonita e simbólica, mas que faz pouquíssimo sentido da forma como vem ocorrendo há pelo menos 50 anos.

Obviamente, os partidos não são os únicos responsáveis pela desmobilização na universidade — um dos poucos espaços, aliás, onde eles podem afirmar que têm base em 2018 sem mentir. Mas uma etapa indispensável para que os espaços que eles dominaram recuperassem a sua legitimidade seria voltar a atrair gente de fora e ter uma preocupação real em mantê-la no movimento. Pautar a unidade até quando for possível e procurar vias de ação fora do ciclo assembleia-greve. Lembrar, vez após vez, que o trabalho de base é e sempre será a parte mais importante de todas em qualquer movimento social. São etapas que não dá para pular.

A esquerda em geral é mais resistente a mudanças do que gostaria de admitir. Sei disso porque faço parte dela, e porque saí de uma greve frustrada não tanto tempo atrás. Porque tentei mudar uma porção de coisas no ano que passei no movimento estudantil — e até mudei um pouquinho, mas muito longe do que gostaria. Porque me frustrei de novo e saí, completando o ciclo comum a quase todo mundo que não usa uma entidade de classe como trampolim para a carreira política.

Tudo isso para dizer que a forma como nos rebelamos precisa mudar. Se vamos parar, que seja a nossa última opção, visível, relevante, ampla. Não porque faltou criatividade.

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Para não ficar só nas críticas, um elogio. O DCE (Diretório Central de Estudantes) atual “inovou” ao usar uma tática do repertório sindical, na semana passada: sentar e negociar pequenas vitórias com a Reitoria. Ainda é velho, ainda é pequeno, mas é um começo. No mais, resta esperar que façamos uma greve melhor da próxima vez.