Bastidores do Comitê contra fraude nas cotas

Saiba mais sobre a produção do dossiê que apontou irregularidades em 400 vagas para pretos, pardos e indígenas

Por Thaislane Xavier

Lucas Módolo e Igor Leonardo na Faculdade de Direito da USP. Foto: Arquivo pessoal

Na Edição 494 do Jornal do Campus, feita nos primeiros meses deste ano, trouxemos à tona as fraudes nas cotas para pretos, pardos e indígenas (PPI) para ingresso na USP. Estamos em novembro, mês em que comemoramos a consciência negra, passaram-se doze edições e precisamos retomar a pauta.

O Comitê Anti-Fraude da USP, criado em meados de 2018 por alunos da Faculdade de Direito, montou um dossiê com mais de 400 denúncias de alunos que teriam fraudado as cotas raciais. 

Talvez, assim como eu, você se pergunte: mas como essas denúncias foram levantadas? Como podem ser fraude se é autodeclaração? A quem cabe apurar essas denúncias? O Comitê era formado por quem e onde eles se encontravam? 

Lucas Módolo e Igor Leonardo, ambos estudantes de Direito da USP e membros do Comitê, prontamente respondem a essas e outras questões que podem atormentar um jovem uspiano. 

De que forma o Comitê se organiza?

O Comitê nunca teve um local físico para realização dos encontros, mas as reuniões costumam ocorrer na sede do Núcleo de Consciência Negra na USP e na Faculdade de Direito da USP. Também não temos um número estimado de integrantes. Nossas reuniões são abertas. Vai gente de toda a USP, mas já tiveram reuniões em que éramos só eu [Lucas], Igor e a Maria José Menezes, por exemplo. 

Quais foram as dificuldades para levantar o relatório?

Entre 2018 e 2019, recebemos mais de 400 denúncias de potenciais casos de fraude ao sistema de reserva de vagas para pessoas pretas, pardas e indígenas (PPI) na Universidade de São Paulo. Chamamos atenção para o fato de que estas denúncias estão associadas somente ao ingresso por meio do ENEM, uma vez que as listas de ingressantes pela FUVEST não estão sendo publicizadas. 

O Comitê tem realizado uma triagem, por meio da qual é verificado apenas se as informações fornecidas correspondem às informações oficiais, por exemplo, se o ano de ingresso do denunciado se deu sob regime de reserva de vagas; se o nome da pessoa corresponde ao curso e lista informado. Junto dessas informações, e de outras provas materiais encaminhadas (imagens, por exemplo), fazemos a organização em formato de dossiê.

Qual a importância dos dados levantados?

Atualmente, as denúncias estão concentradas em cursos da Capital (FFLCH, FAU, Faculdade de Direito e Faculdade de Medicina) e de cursos do Campus de Ribeirão Preto. Ou seja, considerando que a amostragem diz respeito a um número reduzido de cursos, mas com um número expressivo de casos denunciados, há fortes indícios de que o problema é muito maior do que aparenta, e provavelmente há inúmero casos ainda não identificados, numa cifra que pode se mostrar assustadora caso as investigações da Universidade assumam um caráter oficial.

 O que motivou vocês a dedicar um tempo para o tema?

A luta do Comitê Antifraude é uma luta de defesa da política de cotas raciais, cuja função é dar a negros e indígenas acesso a espaços que lhes foram historicamente negados. Com base nas denúncias até o momento recebidas, estimamos que as fraudes aumentaram substancialmente de 2018 para 2019, de modo que em determinados cursos, o que antes era uma proporção de uma fraude a cada quatro ingressantes, subiu para uma a cada três ou até mesmo um a cada dois, o que revela a extensão deste escândalo. O que deve estar em nossa mente e guiar nossa atuação é que cada fraude representa, em concreto, um aluno negro que teve seu futuro sabotado. Esse cenário nos traz uma enorme responsabilidade: garantir que essa política pública seja efetivamente aplicada.

O Comitê é quem validará as denúncias?

Não é de competência do Comitê Antifraude às Cotas Raciais na USP avaliar qualquer estudante preto, pardo ou indígena que tenha ingressado pelo sistema de reserva de vagas. Não temos a prerrogativa e muito menos a disposição em questionar a autodeclaração de quem quer que seja. 

A nós também não poderá ser atribuída a expectativa de instituição dos critérios objetivos que deverão ser utilizados para aferição da veracidade das informações prestadas pelos candidatos na oportunidade de sua inscrição nos cursos de graduação. 

A apuração oficial das denúncias é de responsabilidade da Universidade de São Paulo, podendo envolver outras instâncias da administração pública, do poder Executivo ou Judiciário. As denúncias serão recebidas e o dossiê será formalmente encaminhado, mas jamais haverá avaliação/interpretação/apuração destas denúncias pelo Comitê Antifraude.

Perguntas ainda sem resposta

Junto com a resposta dada vem mais uma questão: porque são fraudes, logo um crime, se o processo de ingresso é por autodeclaração? Complexo, já que a autodeclaração é um importante método de resistência e afirmação da negritude, além de ninguém ser “negrometrô” de ninguém. 

A complexidade se torna mais simples, entretanto, quando lemos que “o edital do SISU 2018 estabelece, em seu ponto 29, que, para ter direito à ação afirmativa, os estudantes selecionados, que concorreram às vagas reservadas aos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas e que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, deverão possuir traços fenotípicos que os caracterizem como negro, de cor preta ou parda ou, no caso dos indígenas, o reconhecimento dessa identidade por parte do grupo de origem, conforme disposto no artigo 3° da Lei 6.001/73.15.

Se você se autodeclara negro e não possui o fenótipo, mas mesmo assim se matricula, você frauda e, como consequência, pode estar sujeito a penalidades administrativas (inclusive o desligamento de matrícula), cíveis (como ressarcimento ao erário) e penais (crime de falsidade ideológica).”

Solucionamos o problema, então basta desligar essas pessoas da Universidade e colocar outras em seu lugar, correto? Bem, não é tão simples assim. Há alunos que cursaram vários anos e sua vaga seria perdida – outro aluno não poderia substituir o fraudados no meio da graduação. 

“O desligamento faz sentido, porque se trata efetivamente de uma burla ao concurso público, é uma ilegalidade. Mas temos que pensar: a vaga fraudada vai ser perdida? Tem como reaproveitá-la? Como concretizar isso? E o dinheiro público gasto com esse estudante fraudador? Teria como recuperá-lo?”.

Estamos longe, infelizmente, de achar respostas perfeitas para essas perguntas. É necessário discuti-las, mas, como disse Lucas, “é uma discussão a ser feita num futuro (próximo)”.