Especial EAD: As diferentes faces do ensino a distância

Problemas gerados pelo isolamento social somam-se à vulnerabilidade social e ameaçam desempenho acadêmico

Por Mariana Cotrim

Por trás das webcams, a infinidade de dificuldades enfrentadas por alunos prejudica o aprendizado. Imagem: Mariana Cotrim

Esta matéria faz parte do Especial EAD. Nesta edição, reunimos alguns dos temas que despertaram discussões a respeito do ensino à distância em tempos de isolamento social. Os links de todas as matérias podem ser acessados a seguir.

A suspensão das aulas presenciais no final de março e a adoção do ensino on-line levou alunos da universidade a descobrirem desafios que os rodeiam dentro de casa. Cansaço, saúde mental desgastada, alta carga de trabalhos acadêmicos combinado às tarefas de casa, vulnerabilidade social e, ainda, enfrentar uma pandemia em um cenário um tanto incerto. São inúmeras pessoas que não sentem seu aprendizado tão bom quanto antes da pandemia e o simples fato de estar dentro de casa já dificulta essa situação.

Caíque Siqueira, estudante do Instituto de Química, é uma dessas pessoas. Desde que começou a ter aulas a distância, seu principal problema é o foco, já que não fica mais sozinho dentro de casa e, frequentemente, tem seus momentos de estudo interrompidos por familiares.

O andamento das matérias é um outro motivo de aflição. Segundo ele, “o ensino a distância, pelo menos no curso de Química, é muito complicado porque a gente tem muita aula prática. Mesmo que neste semestre eu só tivesse uma matéria prática, essa matéria ficou muito defasada porque a gente só tem a teoria e vai ser passada a parte laboratorial em janeiro, fevereiro, se a quarentena acabar”.

A dificuldade em conciliar tarefas de casa com horários de estudo também contribui com o desgaste de Caíque. Ele precisa ajudar sua mãe a cuidar da casa e, muitas vezes, tem que pausar os estudos. Para ele, é provável que o resultado disso seja não passar em algumas das disciplinas, mesmo que tenha, fora de casa, o apoio de amigos e até de professores que, em sua grande maioria, estão dispostos a ajudar.

A experiência do primeiro semestre traz insegurança em relação à continuidade do curso. “Se neste semestre eu já estava esgotado, no próximo, como na Química, toda matéria depende da que já passou. Eu acho que vou ficar muito defasado em relação a algumas matérias”, afirma. Ele decidiu não se matricular para todas as disciplinas obrigatórias.

Assim como Caíque, Giuliana Nunes, estudante da Fofito, também decidiu se matricular para um menor número de disciplinas no próximo semestre, levando em conta a baixa qualidade de seus estudos neste período. Ela também enfrentou dificuldades, principalmente por não ter um lugar propício para assistir às aulas e estudar, além de também não conseguir estabelecer uma rotina que separe suas tarefas domésticas das acadêmicas.
No início das restrições, Giuliana dividia a sala de estar com a mãe e suas duas irmãs, facilitando a distração e levando-a a estudar no quarto, sendo a cama seu escritório. As interrupções para que a estudante ajudasse nos afazeres domésticos somados às quedas de conexão no meio das aulas, fizeram com que seu desempenho no processo de aprendizado não fosse bom.

Outro problema que não só Giulliana enfrenta são os equipamentos que usa para assistir às aulas. Seu computador não possui os programas que os professores utilizam para dar as atividades e é preciso que colegas convertam documentos para que ela consiga acessá-los. Para alunos que careciam de internet ou computadores, a faculdade contribuiu com empréstimos de notebooks e chips de internet, mas a aluna considera a solução como paliativa e com falhas, a internet muitas vezes não é o suficiente e há falta de programas essenciais, por exemplo.

A alta carga de trabalho cobrada também é um ponto que a incomoda. Segundo ela, os professores não consideram a mudança de cenário. “Estão cobrando da gente uma produtividade que é a mesma que a gente tinha antes, que era a gente numa sala de aula com equipamento, o slide, na sala, tendo uma biblioteca para pegar livro, para poder estudar num lugar silencioso”, relata. Apesar disso, ela reforça que a ajuda entre colegas de turma tem sido uma boa rede de apoio.

Giulliana e Caíque representam muitos alunos que sofrem ao tentar se adaptar ao ensino a distância, mas não carecem dos equipamentos que são essenciais para completar seu semestre. Caíque, no início da quarentena, teve que usar o fundo de garantia da mãe recém-desempregada para comprar um computador. Nem todos, no entanto, podem contar com isso. As pessoas sabem da existência de estudantes que passam por dificuldade, mas isso não faz parte da realidade de muitos. Isso não significa que os problemas não estejam ali.

Ana Fernandes estava no quinto semestre do curso de Letras quando a suspensão das aulas presenciais foi decretada. Moradora do Crusp, Ana teve dificuldades com o acesso à internet nas primeiras semanas em que estava na universidade, já que a distribuição de modens de internet ainda não tinha sido feita. Desempregada e sem perspectiva de conseguir um emprego em plena pandemia, teve que voltar à casa de sua mãe para minimizar os gastos e, lá, encontra dificuldade por não ter um lugar adequado para estudos e por não ter um computador.

Todas as atividades e aulas de Ana estão sendo feitas através de seu celular e, como não consegue comprar um notebook novo, já aceitou que completará seu semestre somente com o uso do dispositivo. A adaptação não tem sido fácil. Foi preciso aprender a usar programas, como o Microsoft Word, no telefone e o desgaste físico e emocional tem sido grande. “Eu não consigo ler tanta coisa pelo celular, a minha cabeça dói, meu olho dói, não é nada bom”, conta. Para facilitar esses fatores, a estudante busca adaptações como resumos e livros em áudio e espera conseguir absorver o conteúdo da mesma forma que alguém que tenha materiais mais adequados.

A agitação do início das medidas restritivas, saída do Crusp e problemas com o computador atrasaram seu acompanhamento nas matérias e a desencorajaram nos estudos. “Eu não estou aprendendo quase nada, estou fazendo o mínimo possível pra passar, porque eu não tenho condições de ler os textos”, relata. Ana iniciou o semestre com oito matérias, mas deixou de fazer duas delas ao longo dos meses por saber que não conseguiria levá-las adiante.
Este período levou a saúde mental de Ana ao limite. “Eu me senti totalmente desolada, mal mesmo, sem ânimo, sem energia, a última coisa que eu queria era fazer aula on-line”, relata. Os problemas com a universidade somaram-se aos desafios que já tinha dentro de casa: sua mãe, autônoma, é a única que tem uma renda e consegue ajudar a família.

Os professores, de acordo com ela, foram compreensíveis. Houve a flexibilização da entrega de trabalhos e a aluna julga isso como um ponto positivo. No entanto, o próximo semestre já é motivo de preocupação, porque ela sabe que continuará usando seu celular como meio de estudos, e isso não a anima.

Os desafios que Ana encontrou no início das aulas on-line, ainda no Crusp, parecem não ter sido totalmente resolvidos. Um aluno, que preferiu manter-se anônimo, ainda encontra-se nas moradias e relata a dificuldade de manter-se psicologicamente bem nas condições em que está.

O modem de internet distribuído aos moradores, muitas vezes, não funciona, e isso contribuiu com o acúmulo de matéria, perda de prazos e interrupção das aulas. O estudante teve que trancar a principal disciplina de seu semestre e sente que seu aprendizado foi muito afetado. Além das falhas na internet, os moradores do Crusp tiveram que lidar com problemas como falta de água, luz e a precariedade das instalações, contribuindo com a insegurança que o aluno sente.

Mesmo com o apoio de professores e das faculdades, há críticas ao modo como a USP tomou as decisões. Para Caíque Siqueira, a realidade de inúmeros estudantes da USP não conta com o acesso à internet ou até facilidade no aprendizado. O aluno que vive no Crusp também mostra-se decepcionado com o que tem vivido. “É muito triste, parece que toda a trajetória acadêmica que fizemos com muito esforço foi para nada. Os projetos, bolsas, intercâmbios agora ficam ainda mais distantes”, completa.