A áspera poesia de quem mora no campus

Projeto inédito reúne, de maneira independente, autores que vivem a universidade como ninguém

Etiqueta na cor roxa para editoria de Cultura


por Ivan Conterno

Estudante observa reforma no térreo do Bloco D, que abrigava o curso de Ciências Moleculares. Foto: Ivan Conterno/JC

O livro Escritos Cruspianos foi lançado na última sexta-feira 13 durante o jantar do Restaurante Central, servido das 17h30 às 19h45. O evento foi realizado na ágora logo em frente ao prédio e contou com a presença do professor do Departamento de Filosofia da FFLCH Homero Santiago, antigo morador do Conjunto Residencial da USP (Crusp) e responsável pelo prefácio. Trata-se de uma compilação literária organizada por Gustavo Salmazo, formado em História pela USP. Todo o material foi escrito por estudantes que viveram no Crusp entre 2016 e 2019.

Com 27 prosas, 48 poemas e 4 tirinhas de 25 autores, o projeto pretende apresentar o local por meio das reflexões de seus habitantes. A ideia surgiu em 2018, quando os estudantes dos apartamentos 509, 510 e 511 do Bloco F resolveram fazer um registro da moradia inspirados no documentário “A Experiência Cruspiana”. Dirigido por Nilson Queiróz Couto e lançado em 1986, o filme narra a história do conjunto residencial desde a sua primeira ocupação pelos estudantes, em 1963, até os anos 1980, durante o lento processo de recuperação dos seus blocos para a moradia estudantil.

O livro, entretanto, se desenvolveu de maneira diferente do documentário. Ao mesmo tempo em que nenhuma das pessoas envolvidas no projeto do livro se sentia capacitada a escrever uma história do Crusp, muitos moradores possuíam material literário inédito em seus cadernos de anotações aguardando um espaço para que fossem divulgados.

A ideia amadureceu e foi amplamente divulgada pela moradia em 2019, quando  Gustavo Salmazo passou a receber textos dos mais diversos moradores. Muitos deles chegaram até uma conta de email criada exclusivamente para esse fim, mas o estudante também recebeu alguns escritos à mão e outros impressos em folha sulfite. Quando o prazo estipulado para o recebimento dos textos se encerrou, os editores precisaram criar um critério para selecionar o que seria publicado. Decidiu-se, então, que todos os autores deveriam ter espaço, independente da habilidade literária, havendo apenas um limite de páginas por pessoa.

A seleção de escritos retrata como é ser um jovem sem recursos que estuda em uma universidade de elite, ainda por cima morando nela. Os autores, pessoas vindas de diversos lugares de dentro e de fora do país para estudar em São Paulo,  passaram a viver o começo da vida adulta num mesmo conjunto de moradia, lidando com as vantagens e as limitações que o Crusp impõe na jornada da vida acadêmica.

Embora uma assembleia tenha destinado R$ 1500,00 da Associação de Moradores do Crusp (Amorcrusp) para alavancar o projeto, o valor se mostrou insuficiente para bancar a impressão dos exemplares físicos. Por ora, o livro está disponível no Google Drive para download e em breve deve ser incluído nas plataformas de e-book.

A psiquê cruspiana

Para Salmazo, publicar o que os cruspianos pensam, sentem e como concebem o espaço em que habitam cria uma espécie de “psicogeografia”, como se esse local que possibilita o encontro de diferentes pessoas também produzisse “uma psiquê própria, uma cultura e um tipo de mentalidade desse espaço”.

Embora não houvesse uma temática definida para a convocação dos textos, quase todos carregam um ar melancólico, assim como quase nenhum se atreve a ser alegre. O subtítulo do livro — “memórias da casa verde” — faz menção ao manicômio da novela “O Alienista”, de Machado de Assis, onde o Dr. Bacamarte realiza seus estudos. Exagero ou não, os escritos têm em comum não a necessidade de contar causos que envolvem o Crusp, mas a propensão de apresentar o olhar dos cruspianos sobre o mundo à sua volta. 

Algumas referências presentes no livro só serão entendidas por quem já passou pelo Crusp, como é o caso do grito “canalha”, ecoado aleatoriamente das janelas, um tipo de desabafo bastante peculiar. Coisas como essa representam um traço de identidade do cruspiano.

Segundo Gustavo, o morador do Crusp concebe a universidade não só como polo produtivo de conhecimento da sociedade, mas como sua moradia. “Só quem mora no Crusp ou muito próximo, nas redondezas, consegue ver a universidade como seu quintal” e “ver o pôr-do-sol das famosas escadas de incêndio”. O morador do Crusp pode passar semanas ou meses sem colocar o pé para fora do campus algumas vezes. 

Para o historiador e também eletricista de formação, que organiza o livro, ao chegar na moradia estudantil o jovem é desterritorializado. “Os moradores não vivem mais em suas cidades de origem, mas também não são moradores permanentes da Cidade Universitária”, explica. São pessoas que criam uma enorme expectativa de estudar na USP, sendo muitas vezes os primeiros de suas famílias a ingressar no ensino superior, mas se defrontam com a penosa falta de suporte para a sua formação.

O convívio quase que exclusivo com pessoas entre 18 e 30 anos, sem pessoas mais velhas e com poucas crianças, também cria um ambiente próprio, totalmente diferente de outros bairros e conjuntos habitacionais. Por outro lado, esses estudantes enfrentam o desprezo de colegas mais ricos e dos professores, além de precisar recorrentemente desmentir os mitos em torno do local para quem não conhece o lugar. “A maior parte da comunidade universitária não convive com pessoas do Crusp, o que cria um distanciamento e, por consequência, preconceitos”, esclarece o organizador do livro.

Descaso da universidade

As cozinhas não têm bocas no fogão, um dos temas das tirinhas presentes no final do livro, que retrata o cruspiano cozinhando com labaredas. Mais recentemente esse problema acabou porque a universidade parou de fornecer gás de cozinha também. Não há mais máquinas-de-lavar comunitárias funcionando e os alunos têm como alternativa uma pia no banheiro. Fatos como esses forçam os moradores que juntaram algum dinheiro para instalar eletrodomésticos nos minúsculos cômodos dos apartamentos, aumentando a demanda de corrente elétrica nos prédios e o risco de acidentes.

No bloco mais novo da moradia, o chuveiro não fornece água quente quando não faz sol, pois o aquecimento é feito por placas solares. Ou seja, o chuveiro esquenta em dias ensolarados e fica gelado nos dias nublados, por mais irônico que isso possa parecer. Gustavo reconhece que “coisas que são banais para o cruspiano são absurdas para outros alunos”. “A gente naturaliza [os problemas]”, lamenta.

É nesse ambiente precário e destruído, no coração da maior universidade do país, que foram escritos textos, em sua maioria autobiográficos, reunidos na coletânea. A seu modo, o livro não só é entretenimento garantido como já nasce como relato histórico de uma época da Cidade Universitária.