Jornada dura que é recompensada

No Ano da França no Brasil, uspianos revelam dificuldades de assimilação cultural no intercâmbio, mas consideram as experiências positivas

Sem dinheiro, sem conhecidos ou lugar para ficar, sem qualquer tipo de estrutura e, o que é pior, sem falar o francês. É assim que muitos intercambistas brasileiros desembarcam na França. Vender o carro e fazer empréstimos são coisas de praxe para aqueles que não podem contar com a renda dos pais. Após entregar uma extensa lista de cópias e documentos à universidade francesa e ao consulado, os recém-chegados encaram uma espécie de luta pela sobrevivência. Aluguel e comida estão entre os itens mais caros de Paris. Nessa situação, turismo se faz a pé e quando é possível conciliar o bolso e o relógio.

Foi assim que Augusto Veloso-Pampolha, doutorando em Ciências da Comunicação pela Paris 4, chegou à capital francesa. Do empréstimo feito no Brasil antes da viagem, resta pouco e, sem receber a esperada bolsa do CNPq, ele tem poucas oportunidades para desfrutar de um “café dans la rua”.

Assim como ele, Fábio de Castro, formado em jornalismo pela ECA-USP em 96 e pós-graduado pela Paris 3, recorreu a albergues da juventude no início. Fábio conta que alugar um apartamento em Paris é uma odisseia. “Os franceses adoram les papiers”, brinca, ao lembrar que foi pedido comprovante de residência para conseguir uma moradia.

Mas se para o primeiro o período no albergue foi época para caminhar pelas ruas de Paris, para o segundo, a tensão acumulada resultou na quebra de uma obturação nos dentes enquanto dormia. Mas Fábio ensina um truque aos possíveis interessados para que não padeçam de estresse semelhante. Ele descobriu que revistas de classificados podem ser úteis se você souber como usá-las.

Na procura insone por um apartamento, Fábio recorreu aos anúncios de uma revista de classificados, que chega às bancas toda segunda-feira. Qualquer tentativa de locação depois das 9 horas da manhã é perda de tempo. Em conversas com amigos, descobriu que tinha que esperar pelo caminhão de entrega da publicação em sua primeira parada, a estação Salazar, e lá madrugar com outros desesperados. Às 4h30, o caminhão chega, revistas são compradas e todos correm aos orelhões. E como a demanda é muito grande, “o proprietário escolhe o inquilino a dedo”.

Tolerância

Com seu “francês meia-boca”, Augusto teve maiores dificuldades para fazer contato com os parisienses. Uma reclamação geral dos brasileiros em Paris se deve à agressividade e impaciência das pessoas, características que se converteram em estereótipo. Mas para Augusto, a forma comportamental é semelhante a dos paulistanos: “a mesma correria, a indisposição ao outro, o olhar objetivo para frente, sem se importar com as coisas que estão ao lado”. Ele aconselha que “você precisa melhorar seu francês para não cansá-los, pois todos estão sempre ‘fatigués’ por estresse”.

“O que eu senti foi invisibilidade”, conta Fábio. Como Paris é uma cidade cosmopolita, repleta de estrangeiros, um brasileiro a mais não é novidade. “A tolerância deles tem essa contrapartida, que é te ignorar completamente”. Quanto à grosseria, o jornalista se revolta. Para ele, os parisienses não têm tantos motivos quanto pensam para reclamarem de estresse. “Eu via metrô em todas as esquinas, tudo limpo, a cidade linda. E eles se achavam sofredores!”.

O casal Lucie Christine Casana e Sidney Rodrigues dos Santos, que vivem na França há cerca de sete anos, notaram um “racismo bem pronunciado”. Constantemente confundidos com marroquinos, foram mais bem recebidos pela comunidade árabe local do que pelos parisienses.

Sidney é guitarrista e foi a Paris mostrar seu jazz nos clubes noturnos. Ele admite que chegou à capital cheio de ilusões e esperando fazer sucesso. Ledo engano. Fazer parte do meio musical parisiense é difícil, porque o círculo é fechado. “O francês é muito bairrista”, explica Lucie. Grandes trabalhos e turnês comumente são passados aos patrícios, muitas vezes mesmo quando o estrangeiro tem maior qualidade como músico.

Sidney e sua filha em Villiers en Désoeuvre, distrito de Chanu, onde o casal reside atualmente
Sidney e sua filha em Villiers en Désoeuvre, distrito de Chanu, onde o casal reside atualmente
Ilusões perdidas

Tanto Sidney quanto Lucie imaginavam uma Paris maravilhosa, o “berço da educação e da cultura”. Lucie, filha de um francês radicado no Brasil, sempre ouviu que “na França tudo funciona”. Hoje, ela pensa diferente. “Os trens também atrasam bastante por aqui!”, brinca. Sidney, que teve mais dificuldades, revela que passou a gostar menos da língua francesa ou da Torre Eiffel.

O serviço ao cliente é outra coisa que “não existe”, mesmo com todo o turismo. Segundo Lucie, como a França é um país com leis trabalhistas fortes, é difícil demitir funcionários. “Então eles te recebem por obrigação”. No entanto, a falta de cordialidade parisiense é amenizada pela acolhida do governo, cuja parte social é consolidada. No início, o casal recebia auxílio equivalente ao valor do aluguel, um dos elementos que mais encarece Paris.

Augusto desfrutou mais do turismo local. Admirou o rio Sena, a catedral de Notre Dame e o museu do Louvre. Para ele, estar numa cidade centenária foi como estar num grande cenário. “Tudo é cena e representação, você é um mero figurante; quase tudo é opulência”, diz. E completa: “Para se ter o papel principal, você precisa ter dinheiro, falar o francês ou fazer algo significativo”.

Já para Fábio, a decepção foi outra. Em conversas com os “inteligentes universitários da Sorbonne”, descobriu que os franceses acham que a obra de Paulo Coelho está na mesma categoria de autores consagrados da literatura nacional, como Jorge Amado. “Eles dizem que o brasileiro tem preconceito com Paulo Coelho porque é mais simples”, conta. “O tradutor para o francês dele deve ser muito bom!”, brinca.

Assimilando a viagem

“Lembro de todos os dias que passei em Paris”, conta Fábio. “Você fica sensível por estar deslocado”. Segundo o jornalista, o maior aprendizado não é sobre a cidade ou a cultura, mas vem com a capacidade de comparar o que é humano e o que é cultural. “Percebi um pouco o referencial do nosso imenso isolamento cultural”, diz. Para ele, a cultura brasileira passou de “meio frouxa” para altamente particular.

Voltar ao Brasil foi mais contrastante que ir à França. “Você passa um ano reconstruindo o Brasil na sua cabeça, idealizando, justamente porque a situação em Paris não é fácil”. Por muito tempo, São Paulo continuou distante e a capital francesa próxima. Por isso relata que quando voltou, “parecia que todos estavam de férias”, conta o jornalista, referindo-se à calma dos brasileiros e ao sentimento de deslocamento inicial.

No caso de Augusto, ainda em Paris, o trunfo da viagem é “a possibilidade de estabelecer um diálogo franco e aberto”. De conseguir indicações precisas para realizar sua pesquisa e oportunidades de se revelar, ampliando conhecimento científico. “Isso deveria ser possibilitado a todos os estudantes que desejam sair e viver essa experiência. Trata-se de um investimento social que pode ser pago em atividades de ensino e cultura no Brasil”, afirma.

Em geral, os estrangeiros na França concluem que morar fora é sempre positivo, mesmo com todas as dificuldades. A assimilação do que foi vivido leva um tempo para acontecer, muitas vezes só depois da volta ao país de origem. Nas palavras de Lucie, o “estrangeiro se adapta (à cultura francesa), não se integra”, mas todos afirmam que a pessoa passa a se conhecer melhor. Mais importante que isso, diz Lucie, é “não esquecer quem você é”.