Plataforma é criada por alunos da pós-graduação para receber denúncias de assédio na USP e analisar quais os tipos mais comuns, quem os comete e em quais cursos
“Você não sabe fazer isso? Olha como você é burro! Você não é um pesquisador e não deveria estar na universidade”. Xingamentos como esse e outros muito piores são uma forma de assédio que permeiam o ambiente acadêmico, mas que infelizmente passam despercebidos no cotidiano da universidade. Quebrar o silêncio e denunciar casos de assédio tanto moral quanto sexual praticado por professores ou colegas é um desafio e uma experiência traumática para muitos estudantes. Além de fragilizado, o aluno tem medo de prejudicar sua carreira acadêmica por conta de desentendimentos com docentes que estão em um nível hierárquico superior. “Vivemos em um cotidiano violento que não é reconhecido como violento. Dependendo do caso, o assédio é menosprezado e não tem visibilidade. o sujeito que é assediado está invisível. E uma vez que ele é considerado menos importante, a universidade não tem como responder a isso, não tem ferramenta e não tem nem como identificar. Então as coisas vão acontecendo e existe uma forte sensação da impunidade, porque raramente o assediador vai ser responsabilizado”, explica Fernanda Luccas, aluna da pós-graduação e integrante do Grupo de Trabalho Contra Assédios na Pós-Graduação, um projeto criado pela Associação de Pós-Graduandos da USP, que tem como objetivo acolher e orientar estudantes que passam por esse tipo de situação, além de funcionar como uma plataforma de denúncia, quantificando e averiguando quais os tipos de assédio mais comuns, quem pratica com mais frequência e em quais cursos.
Relações de poder
No ambiente acadêmico, as relações hierárquicas são facilmente confundidas com relações de poder, “O assédio moral e sexual são a cereja do bolo. Quando uma pessoa que tem uma relação hierárquica diferente pode assediar aquele que está em uma relação hierárquica inferior, com a certeza de que essa responsabilização não vai acontecer, perpetua diversos tipos de violência dentro da campus. Não é uma questão apenas da USP, mas sendo a universidade um local onde temos um grande corpo intelectual, esse é o tipo de coisa que não deve acontecer”, afirma Fernanda. Como consequência, a vítima do assédio muitas vezes desiste da vida acadêmica, ou até mesmo consegue terminar o mestrado ou o doutorado, porque não pode desistir da bolsa de estudos, mesmo sem a menor vontade de estar naquele ambiente. “Ela também pode entrar em depressão e adoecer, como em muitos dos casos que conhecemos. E na pior das hipóteses, irá internalizar essa forma de tratamento como um comportamento normal e posteriormente vai reproduzi-lo com outras pessoas. E esse é o tipo de coisa que queremos romper e desnaturalizar”, explica Natalia Dias, também aluna de pós-graduação e integrante da APG-USP e do GT.
Os tipos de assédios
Qualquer um pode ser potencialmente vítima de assédio, no entanto existem diferenças no tipo de ataques sofridos por homens e mulheres. No caso dos homens, por exemplo, o assédio é geralmente moral e acontece com mais frequência em cursos que exigem uma produtividade maior de resultados. Já no caso das mulheres, os assédios costumam ser piores porque se misturam com machismo. “Pelo fato dela ser mulher, ela tem um direito de errar muito menor do que um colega que é homem. Ela tem que provar que é melhor do que ele, senão ela não é digna de ocupar aquele espaço, que em grande parte é dominado pelo setor masculino. Em outros casos, as mulheres são coibidas a não engravidarem durante o período de pós-graduação para não prejudicar a pesquisa”, explica Fernanda.
Além dos casos já bastante comentados de estupros e trotes violentos dentro da USP, outra forma de assédio que recebe muito menos atenção, mas que é relativamente mais comum, são os casos de preconceito entre brasileiros e latinos. O argumento é de que é um absurdo que o Estado brasileiro dê bolsas para alunos de outros países, quando alunos daqui ainda não tem um aporte financeiro necessário. “São discursos xenófobos que ainda aparecem. É inquestionável a necessidade de haver intercâmbio cultural, de termos parcerias com outros países do mundo inteiro”, explica Phillipe Pessoa, também membro da APG-USP e do GT.
Meios institucionais de denúncia
Hoje, no entanto, os meios que a USP possui para apurar e punir casos de assédios são ineficientes. Além da Ouvidoria, existe a Comissão de Ética e a Comissão de Direitos Humanos, que foi criada recentemente como resposta do reitor Marco Antonio Zago à crescente pressão da comunidade para que as denúnicas de casos de violência ocorridos dentro do campus fossem levados adiante.
“A comissão de ética foi estabelecida a partir dos casos de plágios e fraudes de projetos científicos. O foco dela não é a relação entre os atores da ciência. Então embora ela já tenha tratado de alguns casos que envolveram ações de assédio, a nossa decepção é que não temos notícias de efetividade ao tratar desses casos, e nem sabemos se estão abertos” disse Phillipe,.“Já tivemos casos de pessoas que passaram por situações de assédio e não tiveram coragem de chegar até a comissão, porque sabem que são a parte mais frágil”, completou.
Em janeiro desse ano, o reitor delegou à Comissão de Direitos Humanos a responsabilidade de supervisionar a apuração de todas as denúncias de abusos dentro da universidade, como agressões, trotes violentos, estupros e assédios. No entanto, por ser um órgão ainda muito recente, pouco se sabe da real efetividade dessa nova medida. “A Comissão de Direitos Humanos ainda não disse a que veio. Suas atribuições estão sendo revistas, mas não sabemos ainda se vão tratar de casos individuais ou se vão apenas dar diretrizes para que as unidades cumpram seu dever de investigar e de tornar o processo claro e legítimo”, explicou Phillipe.
De todo modo, é um passo importante para que a universidade comece a se preocupar em investigar e punir tipos de comportamento violentos entre seus docentes e estudantes. “A universidade é corporativista, ela se protege, protege seu nome e reputação. Protege a reputação de seus docentes. E ao fazer isso, ela não se importa com o que acontece com essas pessoas. Temos que convencer a universidade que a ciência não se faz protegendo os professores que têm esse tipo de conduta, fechando os olhos para a violência. Por que se a universidade não enfrentar os grandes problemas, quem vai? A universidade é quem deveria ter mais coragem para mudar”, conclui Phillipe.
Por Isabelle Almeida