Bastante populares em países como Estados Unidos e Austrália, as diversas possibilidades de uso do fenômeno nem mesmo chegam a ser estudadas a fundo, no meio acadêmico nacional
“Você está ficando com sono…”, pronuncia uma voz, misteriosa, ao mesmo tempo em que um pêndulo balança de um lado ao outro. Quando se junta isso a um par de olhos arregalados ou a pessoas que imitam galinhas, fica fácil compor a representação midiática mais comum da hipnose. Justamente porque o estereótipo é seu principal contato com o grande público, esse fenômeno ainda confunde a cabeça de algumas pessoas. Ao mesmo tempo, ele já é levado a sério pela ciência ocidental há mais de cem anos e, recentemente, tem ajudado no tratamento dos pacientes de milhares de psicólogos, médicos e até mesmo dentistas ao redor do mundo. No Brasil, no entanto, a prática parece não encontrar espaço suficiente entre o meio acadêmico para conseguir se estabelecer. O “sono” sugerido pelo hipnotizador estereotipado não é em vão, apesar de não condizer mais com a definição científica da técnica. No século XIX, foi o médico escocês James Braid quem escolheu o nome, em referência ao deus grego do sono, Hipnos. Mais adiante em sua carreira, ele mesmo se arrependeu; já séculos atrás, estudiosos sabiam que o procedimento não se relaciona com o ato de dormir. Muito embora haja registros de rituais no antigo Egito envolvendo práticas semelhantes à hipnose, sua história só começa oficialmente no século XVIII, em Viena. Convidado a estudar a habilidade de um padre local de curar seus fiéis, o médico alemão Franz Mesmer desenvolveu a teoria de magnetismo animal, essencial para o surgimento do que Braid nomeou, tempos depois. As interpretações do fenômeno começam pelo caráter sobrenatural atribuído às curas do padre, passando, depois, ao fisicismo de Mesmer, até chegar ao modo em que enxergamos hoje, que vê na neuropsicologia sua explicação mais exata. Essa última mudança se deu quando duas comissões de cientistas renomados foram convidadas a estudar, assim como Mesmer fez com o padre vienense, o magnetismo animal. Com esses estudos, fizeram uma descoberta: a cura proposta pelo médico se dava a partir da imaginação. Hoje em dia, a aplicação desse procedimento pode chegar até mesmo ao âmbito dos esportes. É o que propõe Wellington Zangari, professor do Instituto de Psicologia da USP (IP/USP) e um dos poucos brasileiros especialistas no assunto. “Parece que limites físicos também são modulados pela crença que se tem a respeito deles”, explica. Se é fato que o sono não tem relação com a hipnose, hoje é a noção de sugestão a que mais se destaca nesse sentido. Diante de um atleta, por exemplo, o hipnotizador pode inicialmente pedir pela melhor performance possível. “Já depois de ser hipnotizado, é sugerida a ideia de que ele consegue mais”, conta Wellington. “E, de repente, a pessoa consegue de fato ir muito além”.
Interligada ao conceito de expectativa, essa sugestão é considerada “base” da hipnose. “É o que você usa para influenciar o outro, para causar nele alguma alteração”, esclarece Guilherme Raggi, orientando de mestrado do professor. “A partir daí, a hipnose é meramente uma ferramenta, e usa essa capacidade para causar efeitos geralmente terapêuticos”. A sugestão, portanto, pode estar no território da religião, da ciência, da terapia ou da filosofia, por exemplo. “São simplesmente ideias que podem produzir efeitos sobre nós”, especifica Wellington. Antes de qualquer coisa poder ser sugerida, o processo hipnótico depende ainda de outro conceito: o de indução. “Para isso, tem gente que prefere um relaxamento muscular, respiração lenta, partes do corpo que vão relaxando sucessivamente”, conta o professor. “Há técnicas que são mais próprias para cada indivíduo”. Mesmo assim, segundo os dois pesquisadores, um fator específico deve se fazer presente sempre – e, não, não é um pêndulo. “Sua atenção tem que estar focada, e a percepção periférica, reduzida”, revela Guilherme. “Esse estado deixa você mais suscetível a responder a sugestões posteriores”. Conforme eles explicam, a responsabilidade pelo sucesso do procedimento parte de quem deseja passar por ele. Não é o hipnólogo quem detém um “poder”, e sim aquele que decide, por si mesmo, se é ou não “hipnotizável”. São necessárias, portanto, grandes capacidades de concentração e imaginação, além de habilidades na transformação de ideias em ações. A expectativa à qual a sugestão está interligada – conforme dito anteriormente – determina, além de limites e habilidades, a percepção de sentimentos como a dor. “Geralmente, as coisas doem muito mais quando você estava esperando que isso acontecesse”, explica Guilherme. “Quando você tem estratégias que minimizam sua expectativa, consegue modular a experiência da dor”. É aí que entra a maior parte do uso clínico da hipnose. No caso de dores crônicas, por exemplo, há ainda algo mais curioso no tratamento: ele pode ser auto-induzido. “Há psicólogos, médicos e dentistas que ensinam técnicas de auto-hipnose a seus pacientes”, conta o estudante. No contexto específico dos dentistas, além de amenizar dores, a hipnose também pode ser empregada para a superação de fobias. O sucesso dessa prática na clínica fez com que ela se popularizasse entre profissionais da saúde ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, cerca de 25% dos programas de doutorado em Psicologia Clínica incluem cursos de formação completa em hipnose. No Reino Unido, 45% dos departamentos de Psicologia oferecem cursos do gênero, sendo que essa porcentagem chega a 75% na Austrália. Em âmbito nacional, o Instituto de Psicologia da USP é um dos únicos cujo estudo acadêmico sobre o assunto chega a se destacar.
Além de aprimorar o uso clínico, experimentos com hipnose vêm sendo realizados no intuito de entender melhor algumas dinâmicas cerebrais. Wellington ministra disciplinas no IP/USP em que fala sobre atividades psíquicas dissociativas. “São fenômenos de alteração da personalidade, da consciência humana. Estudamos a mediunidade, por exemplo, e outros fenômenos religiosos como o exorcismo e a possessão”, conta. De acordo com ele, todas essas práticas estão ligadas a uma fragmentação da consciência, algo de certa forma análogo ao que acontece na hipnose. No século XIX, estudos sobre a prática hipnótica também foram essenciais para o descobrimento de novos horizontes. O surgimento tanto da psicologia quanto da psicanálise, por exemplo, está extremamente ligado a isso. Freud, ao entrar em contato com as pesquisas que aconteciam em cidades francesas como Nancy e Paris, teve ideias inspiradoras a respeito da teoria que veio, mais tarde, a criar. “Em sua autobiografia, ele se preocupa em dizer o quanto a hipnose é fundamental”, relembra Wellington. Dentre as consequências da falta de pesquisa e regulação na área, há histórias peculiares. Na década de 70, época em que as chamadas “terapias de regressão” estavam em voga, a hipnose era usada nos EUA como ferramenta para “ampliar” a memória. “Hoje, isso já se demonstrou impossível de fazer”, salienta o professor. A força da sugestão no processo fazia com que muitos pacientes saíssem de suas sessões acreditando ter se lembrado de coisas novas. À procura da origem de traumas infantis, terapeutas tinham o hábito de sugerir acontecimentos ao hipnotizado, fazendo com que, ao “voltar ao normal”, ele estivesse certo de que aquilo tinha feito parte de sua vida. Nesse contexto, durante o tratamento da filha de um pastor, “descobriu-se” um abuso, seguido de gravidez e aborto. O culpado seria, segundo ela, seu pai – causando um escândalo midiático. “Ela ‘lembrou’ de tudo isso”, observa Wellington. “O pai alegou nunca ter encostado na menina. Foi processado. Quando pediram por uma avaliação ginecológica, descobriram que ela era virgem. Acabaram por processar o médico, e, assim que ela teve acesso à informacao, isso foi reconstituído na memoria dela.”. “É comum ver gente que não é nem da área da saúde dando cursos de hipnose”, reclama Guilherme sobre o cenário atual, no Brasil. “Isso é muito complicado. Quem faz esses cursos de curta duração não tem preparo para lidar com as consequências de uma intervenção terapêutica”. Uma Resolução do Conselho Federal de Psicologia regularizou, em 2000, a hipnose como ferramenta auxiliar da profissão no país. Mesmo assim, a conjuntura não parece ter melhorado muito desde então. “É por isso que a gente tem enfatizado muito o caráter científico”, continua o estudante. “Estamos tentando instaurar toda uma cultura de hipnose no meio acadêmico, para que ele se aproprie disso e possa regular”.
Por: Giovana Feix