Endurecimento de regras deve afastar USP dos eventos, mas não amenizará problema
Não é pouco o que esperamos da USP. Apontada como a melhor universidade da América Latina, a Universidade de São Paulo ocupa uma posição de destaque até mesmo em nosso imaginário coletivo. Muito além de publicações em revistas internacionais, esperamos que a USP seja uma espécie de vanguarda capaz de apontar caminhos que escapem do lugar-comum.
Esta credibilidade gera, ao mesmo tempo, uma forte pressão sobre a instituição. Qualquer situação inusitada ocorrida dentro de algum de seus campi tem potencial para incendiar debates apaixonados. Dirigir a instituição é um desafio. Cada medida da reitoria, mais que resolver um problema administrativo, transmite uma mensagem para toda a sociedade. Cada saída escolhida pode se tornar uma “orientação pedagógica social”.
Neste sentido, recentes decisões diretivas merecem reflexão sobre o caminho que a USP está trilhando. Muitas vezes, parece que a instituição não está em sintonia com o que de mais avançado está se discutindo sobre alguns temas do lado de fora de seus muros.
Não é difícil perceber o descompasso entre a recente regulamentação das festas universitárias da USP e a maneira como o debate sobre a legalização das drogas avança na sociedade brasileira. Apenas 3 dias depois da publicação, no Diário Oficial do Estado de São Paulo de 27 de agosto, das novas regras para as confraternizações, no STF (Supremo Tribunal Federal), o ministro Luiz Edson Fachin devolvia à pauta da Corte a ação que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal.
De longe, os assuntos não parecem se relacionar. Por um lado, a USP tenta solucionar o grave problema da organização das festas, que há um ano custou a vida de Victor Hugo Santos, estudante de 20 anos encontrado morto na raia olímpica da Cidade Universitária após um evento promovido pelo Grêmio Politécnico, organização estudantil da Escola Politécnica. Do outro lado, o STF discute a constitucionalidade da intervenção estatal na vida privada dos cidadãos.
No entanto, uma mesma ideia permeia as duas discussões. Tanto nos votos do Supremo quanto nas justificativas da USP, se reconhece que o uso excessivo de drogas é um problema de saúde, que deve ser enfrentado pelas autoridades competentes de maneira efetiva. Também se percebe a convergência da opinião de que o álcool, mesmo legalizado, ainda é uma droga.
As soluções seguem caminhos opostos. Enquanto no Supremo temos um placar de 3 votos favoráveis à descriminalização do porte de drogas, a solução uspiana para as festas, em meio a diversas regras burocráticas (vide matéria na pág. 7) que tentam explicar o que está “em conformidade com a vida universitária”, é uma velha conhecida: a proibição do consumo de álcool.
É difícil acreditar que a decisão votada pelo Conselho Gestor da Universidade no final do ano passado e referendada pela reitoria há poucos dias tenha algum efeito prático. Quase tão tradicional quanto a USP, o consumo de álcool é uma prática enraizada entre universitários. Confraternizações que acontecem com regularidade dificilmente serão interrompidas.
O que dificulta a eficácia da medida, no entanto, não é ela em si, mas justamente a falta de uma estratégia concreta para garantir sua aplicação. Os 34 policiais militares do Koban, novo plano de segurança acordado entre USP e Secretaria de Segurança Pública, foram orientados a não intervir nas festas.
Em entrevista ao Jornal do Campus (vide pág. 4), o reitor Zago também indicou que não serão realizados, no primeiro momento, grandes esforços para fiscalizar o cumprimento das novas regras.
“Nós vamos admitir, em princípio, que os estudantes e docentes sabem que a sociedade é feita de regras, que devem ser decididas da maneira mais adequada e democrática possível. Nós vamos admitir, de partida, que os estudantes vão respeitar as regras e procurar soluções de outros tipos”, disse o reitor na entrevista.
Na mesma entrevista, Zago faz um diagnóstico lúcido sobre a problemática participação de empresas de bebida no suporte às festas universitárias. O reitor afirma ser contra o patrocínio das empresas aos eventos que, de certa maneira, são importantes para que atléticas e centros acadêmicos levantem recursos financeiros.
No entanto, este apoio externo torna ainda mais difícil o cumprimento passivo da proibição. Novas alternativas para captação de recursos pelos estudantes não aparecerão do dia para noite e o interesse das empresas em patrocinar os eventos – não necessariamente com dinheiro, mas com infra-estrutura, como toldos e geladeiras – também não vai diminuir. Afinal, não são os universitários potenciais consumidores de seus produtos?
Em voto histórico no julgamento do STF do dia 10 de setembro, o ministro Luis Roberto Barroso, que votou pela descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, perguntou: “Como neutralizar o poder do tráfico?”. Ele mesmo respondeu à questão: “acabar com a ilegalidade das drogas”. O ministro tem razão. Experiências internacionais comprovam que a legalização das drogas é uma boa opção para aumentar a eficiência na gestão da segurança e da saúde. Após a legalização da maconha no Uruguai, em 2013, o consumo da droga apresentou a menor taxa de aumento dos últimos 14 anos. Além disso, até o mês de junho deste ano, o país não registrou nenhuma morte ligada à maconha.
Na USP, qual está sendo o resultado imediato da proibição do álcool nas festas? Ao que parece, o afastamento institucional destes eventos. Se as confraternizações continuarem acontecendo, daqui para frente não deverão seguir regulamentação alguma, pois serão organizadas na “clandestinidade”.
A dificuldade em organizar festas dentro do campus também pode arrastar os eventos para fora da Universidade. Grande parte das festas promovidas por grupos de alunos da USP, com amplo oferecimento de álcool, já estão sendo realizadas em outros espaços de São Paulo. Afastar os eventos do campus não diminui o risco destas práticas. Isto também deveria ser uma preocupação da instituição.
O uso de álcool é prejudicial à saúde. Não caberia então à USP uma postura diferente? Não parece que a medida imposta pela Universidade conseguirá gerar efeitos positivos no tempo. Muitos especialistas na área, inclusive, apontam que a proibição aumenta o consumo ilegal de drogas. Políticas de redução de danos do uso de entorpecentes, por outro lado, apresentam bons resultados no enfrentamento da questão.
A USP poderia compartilhar a responsabilidade pela segurança e saúde dos alunos com eles mesmos, criando alternativas para que o consumo de álcool dentro do campus fosse realizado de maneira controlada. Regras claras para distribuição e comercialização de bebidas, por exemplo, poderiam ser uma boa saída para o problema.
A Universidade de São Paulo poderia encontrar soluções criativas para desestimular o consumo prejudicial de bebidas. Uma grande campanha de conscientização, envolvendo as diversas faculdades da USP, com alunos de medicina, psicologia e publicidade, entre outros cursos, em um projeto de extensão interdisciplinar, teria um grande potencial para atingir em cheio a comunidade acadêmica.
O uso em excesso de álcool e outras drogas é um problema de todos, que enfrentado da maneira incorreta dificilmente será amenizado. Proibir o álcool pode até mesmo aumentar o risco do consumo, que longe da fiscalização ficaria ainda mais perigoso. Paradoxalmente, conclui-se que a proibição das festas faz mal à saúde.
Precisamos repensar o papel das instituições neste tema, em especial das universidades. Suas estruturas devem ser mobilizadas para enfrentar a questão de maneira mais complexa e efetiva. É preciso se aproximar. Proibir as festas é negar a existência de algo que dificilmente desaparecerá.
Por Igor Truz