Falta de legislação, acesso à universidade e corte orçamentário afetam a pesquisa no Brasil
No início deste ano, o Governo Federal anunciou o corte de 9,4 bilhões de reais na pasta da Educação. Das creches às universidades, todos os setores que dependiam do financiamento do MEC sentiram o peso do anúncio. No ramo das pesquisas, o corte geral veio acompanhado de um aviso: 75% da verba de custeio dos programas de pós-graduação seria retirada. O alarme agitou as instituições e chegou a causar greves nas unidades federais. Os problemas da pós-graduação, no entanto, têm um histórico bem mais complexo, que envolvem desde a falta de estrutura orçamentária para bolsas, até a ausência de direitos básicos como férias, licença saúde e licença maternidade. O Jornal do Campus conversou com representantes discentes da pós-graduação da USP e traz agora um retrato da pesquisa científica na maior universidade do país.
Acesso: vamos falar sobre cotas
Segundo dados do CNPq, o estado de São Paulo é o que abriga a maior quantidade de programas de pós-graduação do Brasil, com quase 800 deles abertos para pesquisas. Deste montante, 222 encontram-se na USP. Apesar de ser o principal polo da produção científica do país, a USP ainda se encontra defasada quando o quesito é acesso à universidade. Com mais de 30 mil alunos matriculados na pós-graduação, a universidade não tem programas de cotas para negros, pardos e indígenas, e acaba reproduzindo na especialização o mesmo cenário da graduação: salas povoadas pela elite. “Na Antropologia Social, em 2013, dos 155 alunos questionados sobre a sua cor de pele, apenas 12 se auto-declararam negros”, conta Jacqueline Moraes Teixeira, uma das pessoas que tenta mudar tal situação.
Jacqueline é pesquisadora do programa de doutorado da Antropologia Social. Desde a greve de estudantes de 2013, todavia, divide suas atenções entre o tema do doutorado e a questão do acesso à pesquisa através das cotas: ela faz parte da Comissão de Cotas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, um grupo formado por estudantes e professores durante a greve daquele ano para estudar a implantação dessa política e formular uma proposta para ser entregue à universidade.
Mapeando quais os programas de pós-graduação no Brasil que já haviam implantado a política de cotas, e procurando entender como funcionavam seus editais de seleção, os pesquisadores perceberam que o método de inclusão não somente era possível como trazia bons resultados. “Um dos argumentos pros programas de pós-graduação terem receio das cotas é que você pode atrair pessoas que não necessariamente seriam de excelência. A gente conseguiu mapear que os principais programas de pós-graduação do Brasil, das áreas de humanidades, têm políticas de cotas há cinco, seis anos. Esse receio da perda da excelência não se justifica”, explica Jacqueline.
A Comissão criou um documento sugerindo a reserva de 20% das vagas para pessoas auto-declaradas pretas ou pardas no Mestrado e no Doutorado, e 5% para pessoas com deficiência, além de um número fixo de duas vagas para indígenas. A proposta foi encaminhada para as devidas instâncias da USP e recebeu parecer positivo em unanimidade até agora. Desde março, o documento aguarda sua última apreciação na Câmera de Normas da Pró-Reitoria de Pesquisa.
O documento escrito pelos pós-graduandos ressalta que para uma política eficaz é necessário, no entanto, o acompanhamento dos ingressantes, estabelecendo medidas como auxílios com critério socioeconomico. A concessão de bolsas, todavia, é um outro problema na universidade.
Permanência: quem consegue fazer pesquisa?
Quem planeja começar um Mestrado pode ainda não saber, mas a maior parte daqueles que são aceitos nos programas não recebe bolsa. Quem tem o privilégio de ser custeado pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), vê cair na sua conta R$ 1500 por mês para um regime de dedicação exclusiva aos livros, laboratórios, salas de aula. Uma vez no Doutorado, o valor aumenta: R$ 2200.
O auxílio financeiro dado em forma de bolsas para os pesquisadores é um dos motes centrais dos debates de representantes discentes e associações de pós-graduandos. Além de poucas, as bolsas têm um valor insuficiente para quem já possui família e precisa lidar com as contas de casa. “Essa é uma das principais pautas do movimento de pós-graduandos: universalização das bolsas de pesquisa. Todos que desejam se dedicar integralmente deveriam poder fazê-lo com bolsa de pesquisa que garanta condições básicas de subsistência”, fala Phillipe Pessoa, representante discente e pesquisador no Instituto de Química.
De acordo com a associação de pós-graduandos da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp (Apogeeu), as bolsas de pós-graduação são 46% menores que o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
Phillipe explica que esse cálculo mostra o quão defasados estão os repasses, o que acaba fazendo com que vários estudantes interessados na pós-graduação desistam de programas em que o regime é de dedicação integral.
Após o anúncio do corte de 75% das verbas de custeio e das consequentes movimentações das universidades, o então Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, disse que apenas 10% seria retirado. Jacqueline e Phillipe reclamam, todavia, que só 25% do dinheiro foi depositado. Em setembro deste ano o El País Brasil fez uma matéria sobre a falta de verba e denunciou que alunos da UFRJ estão diminuindo seu tempo de pesquisa e recorrendo a ajuda financeira de familiares para conseguir completar as viagens de seus Mestrados e Doutorados. Quem não tem a quem recorrer acaba desistindo no projeto.
Dever de trabalhador, direito de estudante
Ainda que 90% dos artigos publicados tenham participação dos pós-graduandos, não há uma legislação que regule o trabalho do pós-graduando. Na prática, isso significa que férias, licença em casos de doença e licença maternidade não são direitos garantidos por lei para nenhum mestrando ou doutorando. “Eu já entreguei relatório no dia 28 de dezembro”, conta Jacqueline. Ela explica que você geralmente consegue tirar alguns dias de folga, mas que isso não tem uma norma regulatória.
Claudiomar Amaro, médico e doutorando em Ribeirão Preto, diz que já presenciou casos em que a pessoa descobriu um câncer e ainda assim não conseguiu prorrogar o prazo da pós-graduação. Para licença maternidade a Capes e a Fapesp seguem uma portaria própria que garante quatro meses de prorrogação do prazo para as mulheres que derem à luz no período da pesquisa.
Por Jessica Bernardo