Era ali nos corredores daquela cidade que crimes de violência brutais ocorriam. Eu tinha uma conversa marcada no USPão. No caminho, passei por uma jovem que gritava “é preciso barrar o avanço do neo liberalismo”. Eu pensava no caso de violência e me peguei questionando acerca do que seria esse temeroso avanço liberal. Me questionei se todo o avanço liberal não teria ocorrido com a queda do muro de Berlim e “vitória” da democracia.
Mas se democracia implica em liberdade, e em 1989 a principal ditadura socialista ruiu, bem como as ditaduras na América Latina que estavam em processo de formalização do fim, então o fato de escolhermos quem nos representa é na verdade um termo de outorga da própria voz. Mas é notável que o discurso não confere com as ações tomadas.
Na maior (e melhor?) universidade da América Latina, espaço onde buscamos o distanciamento da ignorância através do conhecimento e desenvolvimento pessoal seja na graduação ou na pós, testemunhamos crimes brutais que ocorrem com um certo aval de um comitê burocrata. Um local que se coloca como uma bolha perante a cidade, seja no sentido intelectual, seja no social, testemunha um crime cujos atores são vítimas.
Questões de como “as coisas funcionam nesse país” e “a lei de Gerson” ficaram mais claras com o passar do tempo. Mas ao se aprofundar um pouco mais na questão você percebe a distância entre o que está no papel, o preto no branco, e o que ocorre na prática, em termos de ações e atitudes dos agentes responsáveis.
Da mesma forma que a constituição não está sendo seguida em Brasilia, a morosidade administrativa da USP se nega a olhar para o estatuto do Crusp. Reiteradamente tomou decisões que estimulam a impunidade de agressores. “Ah, mas fulano tem boa nota, então poderá continuar morando no Crusp” – é o que se diz em assembleia dos moradores. E então se nota que as regras funcionam sim, mas só são aplicadas a um dos lados: o que tem domínio do processo.
Enfim, sentei-me em uma daquelas cadeiras do balcão para aguardar a entrevista. Abordaríamos as questões que decorriam do agravamento da violência e a ineptidão do setor administrativo da Universidade em tomar providências, bem como as consequências da ocupação da SAS com relação ao corpo discente.
Foi então que notei uma dupla debatendo o impeachment da presidente. Se antes era comum a dicotomização da discussão, entre coxinhas e mortadelas, agora o debate estava mais “tricotomizado”, com a presença dos chamados
isentões. A cena se dava entre alguém que visivelmente era governista tentando convencer um isentão a tomar partido. Nunca entendi muito bem o “Não vai ter golpe” e o “Em defesa da democracia”. Mas de acordo com Aloizio Mercadante, ministro da educação, “em política tudo pode”.
Assim fui me perdendo nas palavras vociferadas: a famosa luta entre o bem e o mal, eles e nós. Em termos de narrativa, a simplicidade que a dicotomia oferece gera reverberações mais expressivas. O principio é claro: uma ideia simples vai mais longe que uma ideia mais diferentona.
Mas se fosse adotar uma postura reducionista, adotaria a ótica da liberdade. Cara pálida, liberdade para quem? A partir do momento em que a liberdade de um fere a do outro, todos os problemas começam. Janaína Paschoal, professora da Faculdade de Direito, pontua em suas entrevistas a questão do tratamento da “coisa pública” por parte do governo federal do PT e a inversão no “lidar com o público como privado”. A narrativa petista dos fatos soa como uma história que é reverberada por adeptos de uma religião. E foi então que pensei no debate acirrado entre religiosos e ateus; os dois grupos se colocam como portadores da verdade. E assim como o fla-flu da política fica em um debate que não avança, porque o diálogo já parte de uma premissa tautológica, que se fecha em si mesma, o bem e mal nunca vão ser extraídos da questão. De um lado, o religioso tenta provar que Deus existe; de outro, o ateu tenta provar que deus não existe. Independente mente do lado, ninguém provou nada, nem que sim nem que não. Assim a crença individual deve ser de foro íntimo.
O que é possível demonstrar é como as questões comportamentais das pessoas mudam quando da sociologia particular de um agrupamento religioso. Tais questões podem ser enquadradas dentro de um olhar
favorável à manutenção da vida em sociedade, ou não. Há diversos exemplos nos quais o bem foi usado para fazer o mal. Um motivo de união se torna razão consubstancializada para separação. A ponte se torna muro; e o que deveria libertar, acaba por aprisionar. A questão da dicotomia (ou “tricotomia”) evolui por si em uma prisão particular.
A liberdade permeia diversos aspectos. Existem momentos de questionamento e momentos de silêncio. Gandhi liderou a revolta da não agressão, e foi perseguido por incitar as pessoas ao silêncio. Um paradoxo: é curioso como as pessoas foram capazes de se indignar com protestos que tinham tudo menos invadir o espaço.
Mas a prerrogativa toda, em um ambiente democrático, é que se cumpra o que está registrado no papel. As regras do jogo podem ser mudadas no meio do caminho, só que a mudança tem um formato adequado: não é porque alguém quer. Existe sempre um órgão responsável.
Não é à toa que o estatuto do Crusp prevê sanções a quem comete atos de violência. No caso, a atitude de não seguir tais regras, que por si existem por uma razão, e já foram discutidas e debatidas anteriormente. Não à toa, existe um processo aberto na Câmara contra a presidente da República: o que existe em comum nos dois casos é o não cumprimento das regras pelas autoridades responsáveis. E daí deriva toda a discussão da torcida. “Contra fatos, não existem argumentos”. Se o fato foi dado, bastaria que o Comitê avaliador do Crusp tivesse tomado as providências para que as regras do estatuto tivessem sido cumpridas. A questão que fica é: por que não foram cumpridas, já nos casos anteriores? As sanções estão previstas no estatuto. Seria o caso da comissão verificar. Mas tendo o boletim de ocorrência e com casos passados de exame de corpo de delito, por que não tomaram providências? O Crusp tem lista de espera de candidatos a moradores e, por que beneficiar um agressor? São perguntas que o admnistrativo da USP não chega a responder de forma clara. Mas responder não bastaria, uma vez que o próprio comitê e o administrador deveriam ser responsabilizados. Da mesma forma que a reitoria está enviando sindicâncias a alunos, por que sindicâncias não são enviadas a quem é conivente de forma reiterada com agressores?
“Mas e essa tal liberdade”, onde fica? Liberdade de expressão, liberdade de ir e vir, liberdade política, liberdade de religião, liberdade de pensamento, liberdade de (conhecer a) verdade: qual é o ponto em que a liberdade de alguém passa dos limites e fere a liberdade do outro? Porque a ocupação é uma forma de chamar a atenção para uma causa que está sendo reiteradamente ignorada. Os casos são exemplos de como passar por cima da liberdade das mulheres que sofrem agressão.
Fico pensando a respeito das consequências de termos passado por uma ditadura militar, e o quanto isso foi prejudicial para o desenvolvimento institucional do país. A própria cidade universitária se organizou dentro de uma lógica antidemocrática, que vem persistindo até hoje.
Para existir, a própria democracia depende de um grau de maturidade dos jogadores. O corpo desenvolve sua própria maturidade para não incorrer em soluções vindas de salvadores da pátria, o que é comum em sociedades atrasadas.
O poder personalista é prejudicial ao cumprimento das regras, tanto na ótica micro, quanto macro. Mas as questões que surgem são inerentes ao próprio diálogo e à pequena corrupção. A moral das pessoas é questionada. E por que não questionar? Por que não termos nossos próprios condicionamentos questionados? A questão da discordâcia e da ausência de sentido de discursos extremistas preocupa: extremos não são factíveis em termos de democracia. Quem discursa o ódio não são os liberais. Inclusive os movimentos feministas surgiram dos ideais liberais.
O processo de libertação das amarras vai ao encontro do entendimento de como funcionam as regras. “Desse jogo eu não quero participar”, dizem as pessoas que optam pela ruptura sistêmica. Na vida pessoal, essa escolha é factível. Mas não dá para eliminar os mercados e não dá para eliminar as regras do jogo: fazem parte da sociedade. Até mesmo quando um indivíduo vai na boca comprar seu baseado, ele está incorrendo na lógica do mercado. Isso existia antes mesmo do capitalismo mercantil.
Olhei no relógio; e no tempo da divagação se passaram quinze minutos. Decidi então dar uma olhada nos e-mails via celular. Percebi que, por desatenção ou ansiedade, apareci um dia antes para a entrevista. O jeito seria voltar no dia seguinte.
Por Breno Leoni Ebeling