Primeira regulamentação do mercado de mídia da América Latina será enfraquecida
Na quarta-feira da semana passada, 06/04, a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou decreto emergencial da presidência que modifica tanto a Lei de Meios, quanto a Lei Argentina Digital. O decreto também dissolve as agências que as regulavam. A aprovação é o primeiro grande passo do governo recém eleito de Mauricio Macri na reversão da política de regulação econômica da mídia implantada pela última presidente, Cristina Kirchner.
A Lei Argentina Digital declarava como serviço público o acesso às telecomunicações, pretendendo universalizá-lo a partir, principalmente, de regulamentação de uma velocidade mínima de nos pacotes de dados e da regulação de preços. A lei também tratava da neutralidade da rede, que é regulada no Brasil através do Marco Civil da Internet.
Já a Lei de Meios ou Lei de Mídia, tratava de diversos aspectos da própria concepção de mídia no país. Limitava o cruzamento de propriedades e de licenças para os mesmos grupos, estabeleceu níveis mínimos de produção nacional, declarava que as radiofrequências são bens públicos e distinguiu mídia comunitária, mídia privada e mídia estatal. Este último ponto da divisão entre os três tipos de mídia incluia a divisão de um terço do espectro audiovisual para cada tipo.
Visões opostas
A lei é objeto de polarização na sua interpretação nos dois principais espectros da política argentina. No ano passado, durante a campanha presidencial argentina, tanto Daniel Scioli (candidato de situação), quanto Macri, a utilizaram como objeto de mérito ou de crítica.
Na avaliação de Pablo Giuliano, jornalista argentino e correspondente no Brasil, a medida foi uma das primeiras do atual governo e que pode ser interpretada como um “pagamento pelo grande apoio que ele teve da grande imprensa, sobretudo do grupo dominante Clarín”. Contudo, segundo Giuliano as sinalizações recentes de abertura econômica do mercado de mídia e de telefonia (em especial para os Americanos) ameaçam o monopólio do Clarín, o que justificaria o aumento de críticas ao presidente Macri nas últimas semanas pelo grupo.
Giuliano ainda afirma que o espírito da lei era “uma grande conquista dos setores que queriam fazer da comunicação um serviço público“. Contudo, ele pondera: “o modo de financiamento da mídia comunitária não estava esclarecido, assim como o papel da internet”
O Grupo Clarín
foi o mais prejudicado. Principal grupo de comunicação da Argentina e detentor de revistas, jornais, canais de TV e rádios, antes da lei possuía mais que 33% tanto no mercado de TV aberta, quanto nos canais a cabo e de rádios. Para se adequar a lei, o grupo teve que vender sua participação em muitos dos seus negócios e frequentemente acusava o governo Kirchner de “perseguição” nos seus editorais.
Ao mesmo tempo o Clarín é criticado por ter sido muito beneficiado pela lei geral que regulava o setor e que foi promulgada durante a ditadura militar, em 1980. Segundo Eugênio Bucci, professor de jornalismo da ECA-USP, durante o período entre as duas leis, em termos de mercado, “havia uma situação cheia de iniquidades na Argentina, cheia de desequilíbrios, de situações que careciam de uma normatização”.
Mídia comunitária
A regulamentação da mídia “da sociedade civil” é um dos principais objetos de polêmica na lei, especialmente devido a reserva de mercado de 33% dos espectros para essa tipificação. Apesar de um suposto caráter público, pelos fins não comerciais necessários para a obtenção deste terço das licenças, Bucci afirma que os pontos positivos da regulação são comprometidos pelo estabelecimento desta divisão.
“O governo fabricou dois terços [comunitária e estatal] do espectro contra um terço [privada].” Segundo Bucci, esta “maioria estranha contaminava o resto”, abrindo espaço para que o governo usasse a Lei de Meios com o objetivo de fazer uma disputa partidária: “se uma TV fala bem ou fala mal do governo é irrelevante para o funcionamento daquele mercado”.
Ainda assim, Bucci conclui que “os marcos da Lei de Meios eram melhores do que a ausência de marcos anteriores”, mas houve perda de credibilidade da lei e agora a mudança com a revisão é o preço a se pagar: “triste que uma lei que poderia ter sido boa, mas não conseguiu ser”.
Resistência
As agências reguladoras da Lei de Meios que foram dissolvidas com a aprovação do decreto de Macri possuiam regulamentações próprias que asseguravam sua autonomia. A direção estava sob kirchneristas e os mandatos não coincidiam propositalmente com os mandatos presidenciais. No entanto, Macri destituiu por decreto Martín Sabbatella, diretor da principal agência, a AFSCA, em dezembro do ano passado.
Justificado pelo conflito com o regimento interno do órgão, houve resistência e manifestações contrárias à medida, mas, na véspera de natal, a entidade foi cercada por policiais e os servidores foram obrigados a desocupar o prédio.
América Latina. A regulação na mídia é alvo de polêmica em toda a América Latina e em todos os governos de esquerdas recentes houve sinalizações ou ações nesse sentido. Em dezembro de 2014, ainda sob a presidência de José Mujica, o Uruguai aprovou um modelo que tem sido menos alvo (mas não isento) de críticas.
No Brasil, a presidente Dilma se afastou desta pauta, mas o ex-presidente Lula tem mencionado o tema com mais frequência desde que deixou a presidência e já voltou a mencionar no último mês. Apesar de enfraquecido, o governo e os apoiadores têm se antagonizado mais a grandes grupos de comunicação no Brasil, o que pode significar pressão pela pauta ainda em 2016, seja como oposição, ou como situação, dependendo do resultado do processo de impeachment.