900 dias com ela

Ilustração: Artur Karaa

Respirei, segurei bem forte meus pertences e tentei, em vão, entrar no metrô. Quando me disseram que era tranquilo se locomover em São Paulo, esqueceram de mencionar que a empreitada pode ser um pouco mais complicada quando você está levando duas malas, uma mochila, uma bolsa térmica, a sacola com roupas de cama e é horário de pico. Sem contar o peso da culpa que você carrega ao deixar para trás família, namorado, amigos e tudo aquilo que você reconhece como vida para estudar a quilômetros de casa.

Antes de subir no ônibus que me levaria à cidade grande e me deixaria de mala e cuia numa estação de metrô abarrotada de gente mal humorada e com pressa, eu tinha dado alguns dos abraços mais difíceis da minha vida. Não eram bem abraços de despedida, porque, cá entre nós, na próxima sexta-feira eu já estaria de volta, mas sim dolorosos abraços de volto logo. Abracei meus pais, minha cachorra, minha cama, meu quintal, minha rua, minha sorveteria preferida, as escolas por onde passei, o cursinho que me possibilitou estar indo embora e minha cidade. A última foi particularmente difícil. Só um estudante que saiu do interior sabe do relacionamento de amor e ódio que existe entre ele e aquela cidade minúscula, cheia de gente que, infelizmente, te conhece e cercada por [insira aqui a indústria típica da sua região – a minha é a canavieira] que o criou. Ia ser impossível me acostumar a ser filha por telefone, namorada por mensagem e amiga aos finais de semana.

São Paulo era para mim um arsenal de desconhecimento. Era aquela cidade que eu sempre via nos jornais e na televisão como perigosa e ao mesmo tempo emocionante. Também era a cidade que todos iam quando precisavam comprar tudo de qualquer coisa. O lugar onde morava aquela tia descolada, que estava sempre usando uma roupa diferente e falando de coisas difíceis, e aquele primo metido que não saía do computador quando me visitava no interior, mas que sempre tinha os jogos mais legais. Era a cidade onde tudo e todos acontecem e fazem acontecer. Era a cidade onde eu aconteceria.

De tanto fantasiar estudar na USP e morar por aqui, achei que seria fácil me acostumar ao ritmo frenético da capital. Hoje, depois de 900 dias com ela, posso afirmar que a cidade continua pra mim uma incógnita. E eu, a menina perdida e cheia de malas esperando o metrô numa estação lotada.

Você provavelmente vai me ver usando roupas inadequadas para o clima do momento, porque o lugar onde eu morava não costumava arder em chamas de manhã, chover de tarde e nevar pela noite, como acontece por aqui. É sério mesmo que é  necessário sempre andar com uma troca de roupas por aí? Também não consigo me entender com o bendito do guarda-chuva. Quatro deles já me perderam desde que me mudei.

Também ando um pouco mais devagar que a maioria das pessoas. Mas é só pra fazer birra: jurei pra mim mesma que nunca ia ser igual ao povo apressado dessa cidade. Eu até que consigo entendê-los, na verdade, porque tudo aqui é longe, nada leva só 15 minutos como é em casa, não tem aquela coisa do aconchego, da pequeneza, do ameno. Mas vocês já ouviram falar de “sair com antecedência”? É mania de paulistano achar bonito chegar atrasado.

E qual é dessa obsessão com o tempo? Já percebeu que toda esquina de São Paulo tem um relógio? Aliás, um relógio com um termômetro, que te lembra a todo minuto que você está atrasado e que, com certeza, vai passar frio enquanto corre apressado por aí. Parece que as condições de temperatura e pressão da capital, combinados com a cultura do just in time que nasceu embutida em sua população, comprimem o tempo que rege a cidade. Posso provar: por que você acha que aqui existem tantas lojas, mercados e farmácias 24 horas?  É pra gente não perceber que o tempo passou durante o dia e não conseguimos fazer nada do que tínhamos que fazer.

Também não entendo como é que as pessoas conseguem passar batido pelas coisas desta cidade. Sempre acabo ficando para trás cativada por algum grupo dançando no meio da calçada, um prédio de uns 300 anos perdido entre dois arranha céus, ou então algum grafite que desafiou alegrar os muros cinzas e sujos. Talvez seja culpa da tal da pressa. Ou talvez o diferente para mim não salta aos olhos destes seres acostumados com a perfeita confusão paulistana.

A verdade é que a vida de quem inventa de deixar a calmaria do interior, com suas ruas e sabores familiares, memórias de infância e cheiro de lar, nunca vai se acostumar ao turbilhão de informações que é São Paulo. Sempre seremos um pouco esquisitos, deslocados, mas principalmente corajosos. Corajosos pois deixamos tudo pra viver uma vida hipotética e o sonho incerto de ser um pouco mais que um nada na maior cidade do Brasil e na maior universidade da América Latina.

Esperei mais dois ou três metrôs passarem e consegui, finalmente, entrar em um vagão. Encostei no fundo, equilibrando todas as tralhas entre um dos meus braços, enquanto o outro agarrava com força a trave para me segurar. Cheguei na estação, estava agora a dois quilômetros de chegar ao minúsculo apartamento que eu chamaria de casa. Quando eu parei pela terceira vez, para descansar e aliviar o peso dos meus ombros, um rapaz que passava me ofereceu ajuda. Pegou as duas malas e a sacola e me acompanhou, sem falar nada, até a esquina na qual eu pararia. Me devolveu as coisas e exclamou: – Bem vinda a São Paulo. Olhou seu relógio de pulso e então seguiu um rumo apressado para sei lá aonde.