O parkour não é um esporte competitivo

 

Integrante do USParkour escala uma das paredes da Universidade. Foto: Vitor Garcia.

Por Vitor Garcia

Quem passava de carro pela rua do Lago, naquele dia de sol, pode ter pensado que os jovens no local eram arruaceiros. Em frente a um dos prédios da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, eles subiam correndo ou aos pulos as escadas, saltavam sobre os corrimões, subiam nos muros e faziam caminhos nada convencionais.

O que talvez o observador apressado não saiba é que os sete jovens reunidos são integrantes do USParkour, o primeiro grupo de parkour da Universidade ligado a uma atlética – a Associação Atlética Acadêmica Gleb Wataghin, do Instituto de Física. A prática consiste em se deslocar de um ponto a outro de maneira rápida e eficaz, utilizando apenas o próprio corpo para ultrapassar obstáculos. Para isso, o traceur ou traceuse – praticante masculino e feminino, respectivamente – treina um conjunto de técnicas.

“Ainda hoje o parkour é marginalizado e então quem treina pelas ruas acaba sendo tachado de vândalo e depredador do patrimônio alheio”, comenta Maria Gabriela Bento, a Pink, aluna do Cursinho da Poli-USP.

Um dos motivos para isso, segundo Lucas Rezende, um dos fundadores do grupo, é que o parkour é uma modalidade recente. Embora sua origem remonte à década de 1990, no Brasil, ele só se popularizou em 2004. “Além de não ser amplamente divulgado, o parkour ainda não é reconhecido como um esporte. Isso faz com que muita gente nos veja subindo muros e ache que queremos invadir ou roubar”.

Os membros do grupo concordam que as pessoas não têm informações suficientes para discernir o parkour como modalidade esportiva. “Não chega até elas o real motivo dos treinos, que é simplesmente se sentir mais livre, poder se conhecer e sair da pressão do dia-a-dia”, explica André Paulo Alarcón, graduando no curso de matemática na USP.

Corrimões e escadas são alguns dos obstáculos utilizados. Foto: Vitor Garcia.

O parkour

A criação do esporte é atribuída ao francês David Belle, que se inspirou em seu pai, um veterano de guerra e bombeiro, para criar o treinamento com seus irmãos e colegas. O nome parkour é uma modificação da palavra francesa parcours (percurso) e o objetivo do seu criador era o de que as técnicas melhorassem não apenas o desenvolvimento físico, mas a formação mental e o caráter dos praticantes.

A modalidade está pautada na cooperação mútua e no extremo cuidado nos treinamentos. Justamente por isso, Maria salienta que “um dos primeiros lemas para um bom treino é respeitar o pico [local de treino]. Ter responsabilidade para não se autodestruir, nem destruir o local.” Lucas completa que, embora os praticantes façam uso das estruturas da cidade, “há um cuidado para não causar problemas e manchar a imagem do esporte. Quanto mais obstáculos, mais livres nos sentimos, mas tudo dentro do limite do bom-senso”.

Nisso está a base do primeiro princípio do parkour: “Ser e durar”. “Significa que não basta você ser bom, dure sendo bom”, explica Lucas. Ele salienta que alguns indivíduos têm um ritmo de treino tão intenso que o corpo acaba não acompanhando. “Aqui, tentamos prezar pela longevidade do nosso corpo.”

Ligada a isso também está a segunda filosofia da modalidade: “ser forte para ser útil”. Logo, tudo o que é desenvolvido no treino precisa ter um propósito e todas as etapas – alongamento, aquecimento, treino técnico e fortalecimento muscular – têm motivo para existir.

No parkour, os praticantes fazem os movimentos apenas quando têm certeza de que são capazes, preparando-se com base em progressões. “A dificuldade é aumentada aos poucos, para que a mente se acostume, e os obstáculos são superados por etapas: começa sempre do nível do chão e vai ganhando altura e distância”, salienta Ulisses Condomitti, pós-doutor pela USP e funcionário da Universidade.

Nos treinamentos, que são gratuitos e abertos a todos que queiram participar, os praticantes sempre acompanham uns aos outros para dar segurança ao parceiro. As palavras de incentivo são recorrentes. “Se concentra no que você tem que fazer, respira e vai!”. “Vai no seu tempo”. “Boa, tá perfeito!”.

Dessa colaboração entre os membros, surge uma das principais características da modalidade: o parkour não é um esporte competitivo. “Na nossa visão, não faz sentido colocar à prova pessoas tão diferentes e com ritmos de aprendizado diferentes”, explica Lucas.

A coesão dos integrantes é essencial. Lucas treinou sozinho depois que os membros de seu antigo grupo se dispersaram. “Embora o parkour seja um esporte individual, quando você está sozinho alguns medos voltam e a motivação cai aos poucos”. Daí surgiu sua vontade de criar, junto com um amigo, o USParkour, em 2017.

Competições

Apesar de ser uma modalidade originalmente não-competitiva, disputas vêm sendo realizadas em alguns lugares no mundo e inclusive em São Paulo. Em 2011, a USP sediou uma dessas competições, realizada no Paço das Artes.

Isso acontece à medida que o parkour passa a ser reconhecido em alguns lugares como esporte. “O problema da competição é que você acaba forçando seu corpo a limites que não são muito saudáveis e a ideia do parkour é se praticar a vida toda, levando como uma filosofia de vida”, defende Ulisses.

Katia Rubio, professora da Escola de Educação Física e Esportes (EEFE) da USP, explica o conceito de competição. “No sentido moderno, a competição coloca um sujeito contra o outro, o que foi muito danoso ao esporte, já que o coloca como uma prática essencialmente destrutiva, privilegiando o vitorioso em detrimento do derrotado.”

De acordo com ela, a competição nos jogos olímpicos da antiguidade significava a busca pela excelência em si mesma, sendo o adversário apenas uma referência para isso. Katia enxerga no parkour uma proximidade com essas práticas. “Não deixa de ser uma competição, mas é uma competição consigo mesmo. Não essa noção dentro do sistema capitalista que você tem que ser sempre o melhor em relação ao outro”.

Foto: Vitor Garcia.

Esporte e saúde mental

Com o parkour, eu saio totalmente da pressão acadêmica e consigo focar em mim. Ele ajuda também a ter auto-conhecimento para lidar com qualquer pressão que se tenha na faculdade”, relata André.

Para Maria, o esporte também desempenhou um papel fundamental em sua vida. “Comecei a praticar no último ano do curso técnico, com os vestibulares chegando e eu saindo de uma crise depressiva. Foi transformador: o momento decisivo para mudar e começar a lutar contra tudo que me era tóxico.”

O esporte na graduação tem um importante papel a desempenhar. Isso porque, segundo Katia Rubio, além da noção do senso comum da atividade física como promotora de saúde, a questão está relacionada diretamente ao prazer. Por isso, a atividade física não precisa necessariamente envolver esportes. “Não precisa ser essa coisa rotulada como atividade física, pode ser dançar ou mesmo fazer jardim. E eu vejo que o parkour é um pouco essa linha, já que é algo desafiador, fora da casinha e uma atividade essencialmente urbana.”

Lucas explica que a linha da não-competição optada pelo grupo está também relacionada à preocupação com a saúde mental de seus membros. “Parkour não é só você ultrapassar obstáculos no dia-a-dia, é uma filosofia de vida e entender que você é único. Então, não adianta ficar se comparando com outra pessoa que se sobressaiu”.

Em um momento no qual estudos vêm demonstrando os altos níveis de depressão e ansiedade no ambiente da universidade, questões como essas tornam-se essenciais. Katia aponta que isso ocorre porque o sistema acadêmico atual é absolutamente insalubre. “Cumprimento de metas, publicações, a busca de um destaque entre os demais, a necessidade de sair da média… Tudo isso tem levado o corpo discente e docente a uma busca pela doença.”

Segundo ela, com as rotinas pré-estabelecidas, o tempo para a prática de atividades físicas vai se reduzindo, já que na ordem de prioridade os esportes ficam sempre em uma posição secundária. “Por isso, temos visto um aumento do adoecimento do ponto de vista mental. É a depressão, a drogadição, o alcoolismo, o tabagismo. É o esvaziamento da alma.”

Katia completa que “o esporte e a atividade física deveriam ser o momento de desligamento do mundo e de um cuidar de si mesmo, que se dá tanto individualmente como coletivamente”. Nesse sentido, ela aponta que a prática também contribui para o encontro de pessoas e a troca de afetividade. “Esses momentos favorecem um convívio social, já que o esporte é presencial e corporal. E efetivamente a nossa existência se dá pela corporeidade.”

Para conhecer mais sobre o grupo e ver os horários de treinamento, visite a página do USParkour no Facebook.

“Se você, mana, tá lendo essa reportagem, bora treinar conosco!”

“Além do USParkour, eu treino com um grupo só de minas: ‘As que Traça’. Uma brincadeira com o título ‘traceuse’, que denomina as praticantes de parkour.

Como ainda hoje o parkour é marginalizado e quem treina pelas ruas acaba sendo taxado de vândalo, a imagem invocada do praticante é um cara meio ‘brutão’, que sai destruindo muros por aí. Mas a realidade é que tem muita mina treinando sim!

É claro que o número é menor. Isso se dá principalmente por conta do desestímulo da sociedade no geral e por esse olhar maldoso que se tem ao relacionar parkour ao vandalismo. Então nessa sociedade do pragmático patriarcalismo: ‘isso não é esporte de mulher’.

Às vezes também, os próprios praticantes homens chegam com aquele papo: ‘vocês são mais fracas mesmo, então não fiquem tristes por não conseguir tal movimento’, o famoso ‘isso é difícil pra uma mina’, quando erramos, ou, ainda, “uau você treina tipo cara, que monstro!” – que na cabeça deles soa como elogio ou reconforto.

Acho que o primeiro passo para mudar essa situação é aumentar a visibilidade não só do parkour feminino, mas do parkour no geral, e desmistificar essa ideia de que somos vândalos.

Quando eu comecei a praticar, foi complicado. No grupo, de uns 120 praticantes, nós éramos quinze, no máximo vinte, traceuse. Então sempre acabávamos ouvindo aquelas frases de incentivo nada acolhedoras.

Apesar disso, o pior mesmo é o pessoal de fora. Isso porque os caras do treino a gente vai dando uns toques e mostrando do que somos capazes. O complicado mesmo são as pessoas de fora, que inclusive chegaram a dizer: ‘mas isso é coisa de moleque’, ‘vai dizer agora que virou sapatão também?’. Essa foi a associação mais ridícula que já ouvi. Então, a gente só ignora e segue em frente.

Então se você, mana, tá lendo essa reportagem, bora treinar conosco! Vamos te receber de braços abertos! Pros caras também, claro, mas esse é meu convite especial de mana pra mana!”

Maria Gabriela Bento, a Pink

 

ERRAMOS:

Na primeira edição da matéria, havíamos informado que o USParkour era ligada à Cefisma. Na verdade, o grupo é filiado à  Associação Atlética Acadêmica Gleb Wataghin. A Cefisma é  o Centro Acadêmico da Física.