Nicolelis: “Percebi um vácuo entre o cientista e a sociedade brasileira”

O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis comparou o tratamento da ciência no Brasil, EUA e China

| Foto: Laura Molinari

Por Sabrina Brito

Já faz cerca de 30 anos que o neurocientista Miguel Nicolelis saiu do Brasil. Há mais de duas décadas ele trabalha como professor titular na Universidade Duke, uma das melhores dos Estados Unidos. Apesar do vasto currículo, foi um feito específico que o levou à boca do cidadão comum mundial e brasileiro: a construção de um exoesqueleto que permitiu, durante a abertura da Copa do Mundo de 2014, que um jovem paraplégico chutasse uma bola de futebol em plena Arena Corinthians, lotada.

Ex-aluno da Faculdade de Medicina da USP, Nicolelis voltou a terras uspianas no dia 27 de setembro para dar uma palestra sobre neurociências no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB).

Apesar da interessante fala sobre o corpo humano, experimentos científicos e comentários sobre sua carreira, foi depois do discurso que a parte mais curiosa do encontro aconteceu. Com duas fatias de bolo de chocolate na mão e o corpo encostado na comprida mesa colocada em frente ao projetor, Miguel Nicolelis fez um desabafo sobre o que significa ser cientista no Brasil.

De acordo com ele, são raras as pessoas que sabem o que faz esse profissional e reconhecem a importância do seu trabalho. “Aqui, a ciência sempre foi produzida em universidades, que são consideradas locais verdadeiramente dissociados da sociedade. O brasileiro paga impostos e quer ver avanço, mas não sabe identificar o progresso nessa área quando ele finalmente chega”, analisa.

“Já me perguntaram, por exemplo, se eu não sentia vergonha de gastar dinheiro público recuperando os movimentos dos paraplégicos”, diz, entre risos irônicos de descrença. “Acho que isso tudo é uma mistura de ignorância, falta de informação e elitismo por parte da academia nacional. É um problema muito profundo”.

Ciência com Obama

Sobre a forma como o governo encara esse assunto, Miguel acredita que, com as recentes notícias de cortes de gastos da Capes, em âmbito nacional, e do Hospital Universitário, dentro da USP, a ciência do país caminha para um estado cada vez mais próximo ao terminal.

O paulistano de 57 anos fez uma comparação entre como é ser cientista no Brasil e nos Estados Unidos, sua segunda casa. Na sala quente e abarrotada, Nicolelis disse identificar um dever de encurtar o vácuo entre os profissionais da ciência e a pessoa comum. “Isso cabe a vocês, jovens da área, resolverem”, disse, se dirigindo à maior parte de seu público, composto por estudantes do ICB.

Mas os problemas não são só brasileiros. Miguel acredita que o status positivo que o cientista costumava ter nos Estados Unidos está desaparecendo, dando lugar à valorização de analistas financeiros e outros engravatados de Wall Street. “Esse processo vem acontecendo desde a época do Obama, que tentou mexer com os mecanismos de financiamento científico americano e caiu no conto dos lobistas, o que foi um desastre para o crescimento da área”, diz.

A China, de novo

Já o efeito do governo de Donald Trump, abertamente contrário a muitas políticas de investimento em ciência, não se fez sentir até agora por ser muito recente, segundo o paulista. “A tsunami Trump vai chegar”, prevê.

Ainda no campo da comparação, o brasileiro concluiu um de seus derradeiros pensamentos em tom sofrido: “Nunca é fácil convencer a comunidade científica de que o que você está fazendo é importante. Nunca”, aponta, com semblante pesaroso.

Simultaneamente à derrocada da liderança americana no campo científico, Nicolelis identifica a ascensão de outra nação nesse mesmo assunto. “O que sabemos sobre a ciência está sendo superado pela avalanche chinesa. Não tem como competir com eles”, assegura.

Para Nicolelis, o principal motor desse movimento é a existência de um projeto de nação aliado a uma cultura milenar muito valorizada no país. “Lá, a população sabe o porquê de fazerem ciência. Isso muda tudo”, afirma, ressaltando também que, na China, recebeu o melhor tratamento de sua vida após revelar que era cientista.