O canto do passarinho

Por Sabrina Brito

O ritmo repetitivo do alarme do meu celular serve de metrônomo, e logo a tão familiar orquestra matinal começa a tocar. O ressoar de portas batendo, o som da água que me escorre pelos dedos enquanto lavo o rosto, as nada harmoniosas buzinas de carros e motocicletas vindas do lado de fora, a rude ópera de xingamentos de motoristas ranzinzas e apressados.

É ao som dessa sinfonia que eu acordo.

Ouço o portão ranger assim que ligo o motor do meu carro, que, já velho, não funciona sem adicionar ao caótico concerto da cidade mais um som estridente.

Solto um suspiro e me junto à infinidade de paulistanos tentando chegar a algum lugar dentro das próximas horas (se tivermos sorte).

Foi então que eu ouvi.

Era um canto baixo, melódico. Um canto de pássaros, sem dúvida alguma. Não precisei pensar para chegar à conclusão – automática, quase natural – de que devia ser o toque do meu celular ou que a rádio devia estar emitindo esse som para anunciar algum quadro novo de um programa qualquer.

Mas o meu celular estava no modo avião e o rádio, desligado.

Demorei alguns segundos para entender a verdade: eram pássaros. Pássaros. De carne, osso e penas.

Minha primeira reação foi rir. Que besteira! Onde já se viu pensar antes no som artificial do que no natural?

Onde já se viu?

Bom, no mundo todo. O tempo todo.

Nosso dia a dia é composto disso: de barulhos maquinais, imagens artificiais, comentários à distância. Nós nos acostumamos a delegar a robôs tarefas que um dia foram exclusivamente nossas, nos submetemos à estagnada confusão do trânsito, passamos momentos de aflição esperando pelas respostas de mensagens de texto nada urgentes. Essa é a nossa vida, nosso cotidiano, ao longo do qual simplesmente desaprendemos a ouvir sons naturais.

Essas palavras ressoam na minha cabeça e abafam todo o resto.

À medida que o passarinho se aproxima do meu carro, abaixo a janela, como que para ouvir o que ele tem a me dizer. O silêncio que preenche o espaço entre nós é muito mais alto do que qualquer barulho. Com o animal empoleirado no meu retrovisor, reflito sobre o porquê de me sentir incomodada.

Talvez esses pensamentos só me rondem a cabeça pelo fato de eu trabalhar com tecnologia em uma revista. Dia após dia é minha função ler sobre como as redes sociais nos isolam, sobre como os robôs estão fazendo de tudo (e fazendo tudo melhor que nós), sobre como ninguém sabe mais o que é ser humano, sobre como os fios e telas se sobrepuseram à humanidade. Mas eu, fruto da virada de um século recheado de novidades, não acredito nisso (apesar de ainda gostar de ouvir o canto dos pássaros).

Pouco fará diferença se consideramos normal ou errado uma criança ganhar um smartphone antes de aprender a falar. Precisamos aceitar que o mundo está mudando e que nós devemos mudar com ele. Nos adaptar aos novos gadgets e nos sobrepor a eles – antes que eles se sobreponham a nós. Afinal, até bem pouco tempo atrás, os passarinhos apenas nos sobrevoavam, enquanto hoje representam esses conjuntos de fibra óptica que podem se sobrepor à humanidade. É, as coisas de fato mudaram.

Não acho que seja condenável que algum jovem por aí passe muito tempo em seu celular e prefira conversar pelo WhatsApp do que pessoalmente. É um comportamento ao qual não estamos acostumados, é novo, nos impacta. Mas não é um comportamento errado, apenas diferente. Quiçá ele sirva até mesmo como prévia do futuro que está por vir. E pode ser que ele não seja tão assustador assim.

A questão é: ninguém é capaz de desacelerar essa enorme roda chamada “avanços tecnológicos”. Dado isso, de que serve criticar os jovens em vez de tentar entendê-los?

Talvez compreendamos o contato humano como preferível ao virtual, mas isso é o que pensamos hoje. E se, no futuro, anormal for conversar com alguém cara a cara? Se for esse o caso, por que somos tão rápidos em julgar esse fato como negativo? Se nós nunca tivemos um mundo como o atual, por que somos prepotentes a ponto de rotular esses novos costumes como absurdos? E se as aves, em vez de deixarem de existir, simplesmente se tornem virtuais? Seria isso tão ruim assim?

Existem, claro, aqueles que advogam contra as redes sociais e o uso exagerado de aparelhos eletrônicos, sobretudo por causa de seus possíveis efeitos danosos na mente do usuário. Mas esse universo é demasiado novo para que o denominemos “negativo”. Agindo dessa forma, enfrentamos com um olhar desanimado uma perspectiva que ainda não conhecemos.

Temos que dar uma chance a essas tecnologias. Temos que dar uma chance a esses jovens que vivem com os rostos fixados na tela e os dedos ágeis passeando pelo teclado. Eles representam o futuro, gostemos ou não. Mais nos valerá entender e apoiá-los do que criticá-los a ponto de se tornarem, com o tempo, adultos inseguros e amargos.

Aceitemos os possíveis pássaros compostos de fios e movidos a eletricidade e formemos um coral harmonioso ao seu lado.

De volta à minha casa, coloco o meu novo animal de estimação dentro da gaiola recém-comprada e fecho a portinhola.