Como é manter a arte viva em meio a uma pandemia?

A criação artística na quarentena pela perspectiva dos artistas da USP 

Por Samantha Prado

 

Escritores, ilustradores, cantores e outros artistas da comunidade universitária compartilham suas experiências com a criação artística em tempos de Covid-19. Imagem: Laura Toyama / Reprodução

Conforme o Brasil entrou em quarentena, multiplicarem-se posts com recomendações artísticas para esses momentos de isolamento: filmes imperdíveis, livros que você “não tem mais desculpa para não ler”, cursos online de desenho, de dança, de pintura, de fotografia, de bordado… e a lista segue. Acontece que, apesar da recente viralização da discussão sobre a importância da arte e dos artistas nesse momento de crise, pouco espaço tem sido aberto para fala dos próprios artistas em si. Afinal, não é acompanhando uma série na Netflix, lendo um livro e aprendendo aquarela que estamos – de fato – valorizando a arte.

Nesta matéria, o Jornal do Campus traz pontos e discussões levantadas sobre a arte na quarentena a partir da perspectiva de estudantes da Universidade de São Paulo que são artistas em diferentes áreas. Você pode saber onde encontra o trabalho de todos eles ao fim da reportagem.

O fazer artístico na quarentena 

A arte é singular, assim como seus processos. Durante a pandemia, portanto, é de se esperar que o fazer artístico apresente as diferentes subjetividades daqueles que os produzem – apresentando maiores ou menores mudanças, facilidades e dificuldades.  “A minha quarentena sem arte seria uma coisa impossível, eu já teria enlouquecido há muito tempo” declara Laura Toyama, estudante de jornalismo que se dedica à fotografia, ilustração e colagem digital. Ela conta que a quarentena tem sido bastante positiva para a sua produção artística, possibilitando que ela produza mais: “quando estou criando alguma coisa, fico muito absorta. Parece que eu me desligo, o que é muito positivo para mim pelo nível de stress que a gente tá passando com a quarentena e com o acompanhamento das notícias. Acaba sendo um escape, sempre me sinto muito melhor depois, dá uma aliviada na cabeça, uma descansada”. Já para Luma Almeida, aluna de biblioteconomia e bordadeira, a criação artística é o oposto é uma forma de se ater ao real e lidar com a ansiedade de querer ter controle sobre as coisas. “O bordado talvez seja um escape de todas as possibilidades que minha cabeça cria. Quando eu bordo eu volto para o real, eu tô aqui sentada com um bastidor na mão, tecido, linha e estou criando algo a cada ponto que dou, a cada escolha que faço”, diz ela.

Enquanto isso, Érika Namie Tamashiro, estudante de editoração e ilustradora, relata que, apesar de ter conseguido produzir seu HQ como projeto de TCC durante o isolamento, ela sente ter produzido menos. “Tive muita dificuldade em criar coisas novas. Acredito que essa situação que estamos vivendo impactou bastante minha relação com a minha própria arte. Isso abala o emocional e o psicológico de todo mundo, não só dos artistas, mas acaba refletindo muito no trabalho artístico”, conta ela. Alex Lourenço, aluno de biblioteconomia, também tem sentido esses reflexos em seus textos. Ele percebeu que muito do que tinha escrito nas últimas semanas tinham, de maneira inconsciente, o mesmo fundo: possibilidades de momentos e encontros pós pandemia. “Já aconteceu de estar escrevendo uma cena em que alguém está saindo de casa e, na minha cabeça, a personagem sair de casa sem máscara já é estranho. Parece que eu, como autor, estou escrevendo essa cena errada, ainda que o ambiente ficcional não seja um pandemia”, conta. 

João Marcelino embarca na gravação remota de seu primeiro videoclipe em meio ao isolamento social. Imagem: João Marcelino / Reprodução

A quarentena e a possibilidade do novo 

Apesar do contexto de tamanha insegurança e instabilidade, a arte segue demonstrando sua capacidade de trazer renovação para aquele que a ela recorrem. Aline Assis, aluna do curso de audiovisual, conta que se descobriu em novas práticas artísticas depois de passar por adversidades com a escrita: “estava tendo dificuldade em escrever poesia porque acho esse um momento muito difícil de colocar em palavras as coisas que sentimos, então comecei a fazer colagens para pensar em outras formas de produzir arte”. Laura diz que seu período de quarentena tem sido bom para revisitar projetos congelados e reinventar suas criações, produzindo coisas diferentes. 

Alex conta que criou um clube de leitura a partir de conversas com amigos que diziam não se sentir calmos o suficiente ler um livro: “depois de começar a ler A Peste (Albert Camus) e ficar até mesmo ansioso com a narrativa, fui para outros livros e comecei a organizar um clube de leitura onde as pessoas pudessem fazer uma troca sobre narrativas mais leves, tentar se conectar com a leitura também pelo entendimento dos outros e, a partir disso, tomar novamente um gosto pela literatura”.

Enquanto isso, João Marcelino embarcou na aventura de produzir seu primeiro vídeoclipe em plena quarentena. Estudante de artes cênicas e auto-declarado artista multimídia, João conta que sua produção já estava planejada quando se viu obrigado a retornar a sua casa no interior de Goiás. Mesmo assim, decidiu seguir em frente com a gravação de “Monja Rebelde” – que veio a calhar com o momento. “Essa música tem muito a ver com a construção do espaço sagrado dentro da nossa casa. Eu a tinha escrito há muito tempo e percebi que tinha total a ver com o momento que estamos vivendo e com fazer esse clipe dentro da minha casa”, declara. 

João realiza a gravação a distância, utilizando o celular e enviando cenas para a edição, e faz questão de frisar que tem sido uma produção artística muito afetuosa devido ao envolvimento e ajuda de sua família. “Tem cenas da minha mãe, que é empresária, dançando aeróbica. Minha irmã, que faz medicina, foi quem gravou quase tudo. São coisas que não tem nada a ver [com produção artística] e que agora falaram ‘ok, vamos fazer isso, vamos te ajudar’. É por amor, mas também é por arte, sabe? Essa produção tem sido muito diferente de todas que já fiz porque tem sido feita com muito afeto, com pessoas que nunca imaginei que estaria vivendo um processo artístico”, conta ele.

Arte como revisitação, crítica e mudança 

Brisalicia é estudante de Publicidade e Propaganda e trabalha com produção musical há quatro anos, majoritariamente ao lado de artistas da comunidade LGBT. De 2019 para cá, seu novo projeto tem tomado forma: a produtora Bixurdia, composta apenas por LGBTs e definida por Brisalicia como um projeto que “surge da necessidade dessas corpas produzindo conteúdo sonoro vindo delas mesmas e ressoando para elas”. O funcionamento da Bixurdia se baseia no recebimento de projetos de LGBTs do Brasil inteiro, que são compilados em um banco de dados e colocados em prática de forma gratuita a partir do momento que a produtora é contratada por algum outro serviço. Portanto, a cada serviço externo realizado pela Bixurdia, abre-se a oportunidade de alavancar produções da comunidade que não estavam em condições econômicas de serem realizadas. 

Brisalicia lamenta as condições precárias que a grande maioria da comunidade se encontra para produzir e sobreviver de seus fazeres artísticos, mas encontra inspiração em trabalhos do passado. “A arte, em geral, é muito da gente ter contato com o que a galera viveu antes e isso dá uma perspectiva de ‘puts, eles resistiram lá naquela época, a gente vai resistir aqui também’. Ajuda a ter um pensamento de que a gente pode aguentar. A arte vai estar aí, eles querendo ou não. E vai estar em suas formas mais diferentes, mais radicais e mais não apropriadas pelas empresas”, declara. 

Luma ressalta o papel da arte como instrumento de mudança através do seu próprio entendimento como artista. “Se você olhar a arte têxtil, ela sempre teve um lugar menor. Esse lugar da arte manual sempre foi atrelado a mulher e ao fazer em casa, até mesmo à questão do silêncio. Tudo isso vai construindo uma ideia de uma coisa feminina e menor, que não é arte, é só uma reprodução bonita”, explica. Por isso, Luma tem trabalhado em se entender como artista têxtil e não apenas como uma pessoa que reproduz uma técnica – o que não é fácil, segundo ela, pois tradicionalmente as duas coisas não costumam estar ligadas.

Já Érika compartilha um questionamento seu sobre discursos que reduzem a arte a um antídoto contra o tédio da quarentena. Nas últimas semanas, multiplicaram-se posts nas redes sociais que diziam que as pessoas deveriam agradecer aos artistas por ter ao que recorrer na quarentena – mas em sua maioria das vezes não falavam sobre a arte como um amparo inspiracional ou como instrumento para buscar conhecimento, mas meramente como forma de distração. A ilustradora acredita que seja importante prestarmos atenção ao tipo de discurso que é gerado com essa narrativa: “acho que essa redução do conceito de arte a um passatempo é prejudicial, acredito que reforça uma ideia no imaginário popular de que tudo que é ligado ao entretenimento não é relevante ou importante para sociedade”. 

Para Luma, se entender como artista segue sendo um processo no universo onde artesanato e arte são vistos como interligados. Imagem: Luma Almeida / Reprodução

O impacto da pandemia na arte

Laura acredita que a quarentena tratará um grande impacto na arte. Ela cita exemplos de pessoas buscando realizar arte a partir de seus entornos, como séries de fotografias de janelas e pinturas de objetos pessoais da casa: “acho que a pandemia acrescentou uma nova temática às novas produções artísticas do mundo inteiro”. Érika diz ter dúvidas sobre futuras mudanças drásticas nas formas de consumo da arte e que, apesar da recente explosão das lives e conteúdos por streams, acha difícil dizer se isso irá permanecer dessa maneira. 

Brisalicia discute um pouco sobre como a questão do digital e do neoliberalismo nesse momento parece ter caído como uma luva para intensificar a precarização da arte: “eu fico realmente muito preocupada com o que nos espera no pós pandemia. Muitas das pessoas com quem eu trabalho já estavam conseguindo minimamente sobreviver do seu corre artístico. Agora, apresentações, shows, festas não acontecem mais e os eventos online não conseguiram se organizar ainda de forma que consigam remunerar todo mundo de maneira necessária. Eu sinto que todas essas questões estão ajudando a desvalorizar a arte”. 

Já João aborda a questão do digital na quarentena como uma possibilidade de revermos não apenas os formatos de arte, mas nossos corpos como um todo. Para ele, estamos experimentando sentir não apenas pela nossa corporeidade física, mas pelas nossas telas também. “Imagino que nesse momento diversas pessoas estejam consumindo arte pela internet, mas também transando pela internet, conversando, mantendo suas amizades, estão sorrindo, chorando… A experiência estética gerada pelas telas mostra que elas geram impulsos no nosso corpo que são verdadeiros”, declara ele. 

Por fim, Aline reflete sobre os impactos da pandemia na arte a partir de sua experiência pessoal. Ela participou de um curso de poesia expandida na Casa das Rosas, os três saraus realizados durante as aulas passaram a ser virtuais. “O que você produz para apresentar em um sarau pessoalmente e em um sarau virtual é diferente”, explica. Ela diz não acreditar que o digital consiga substituir o presencial no pós pandemia: “espero que isso não acabe com a importância do presencial, mas que a gente comece a pensar outras possibilidades”. 

Artistas da USP