Aumento da diversidade nas eleições de 2020

 

por Karina Tarasiuk

Foto: Arquivo pessoal/ Linda Brasil

 

Neste ano, observamos um aumento no número de vereadoras mulheres, negras e trans, se comparado a quatro anos atrásDe 2016 para cá, houve aumento de cerca de 20% de mulheres e pessoas pretas na Câmara Municipal de São Paulo. A porcentagem total ainda continua baixa: apenas 6,3% dos vereadores eleitos são mulheres negras, por exemplo.

Mas as últimas eleições tiveram resultados históricos. São Paulo elegeu Erika Hilton, a primeira vereadora trans negra da cidade. Aracaju teve Linda Brasil, sua primeira mulher trans, a mais votada como vereadora. Curitiba elegeu Ana Carolina Dartora como primeira vereadora negra da cidade. No Rio de Janeiro, Monica Benicio, viúva de Marielle Franco e assumidademente lésbica, foi eleita. Em Belo Horizonte, a vereadora mais votada foi Duda Salabert, mulher trans e defensora dos direitos dos animais.

Conheça duas vereadoras, Linda Brasil e Monica Benicio, que contam um pouco da sua trajetória política e de sua luta como membras da comunidade LGBTQIA+.

Linda Brasil (PSOL 50180)

Foto: Arquivo pessoal/ Linda Brasil

Trajetória política

Linda Brasil, mulher trans e formada em Letras, conta um pouco da sua trajetória até entrar na política, como vereadora do PSOL. “Eu passei por muita violência e exclusão social, mas só comecei  a me conscientizar da importância de participar da política aos 40 anos”, conta. Quando saiu da prostituição, tentou sobreviver como cabeleireira e maquiadora, mas ainda estava insatisfeita. Em 2013 entrou na Universidade Federal de Sergipe, no curso de Letras – Português e Francês. 

“No primeiro dia de aula eu tive um impasse por causa do meu nome social, quando um dos professores se negou a me chamar como Linda. Isso me provocou uma revolta, eu acabei denunciando nas redes sociais, o que gerou uma repercussão muito grande”. Linda processou a universidade, o que gerou uma portaria que regulamentou o uso do nome social. “A partir daí eu comecei a entrar na luta do movimento estudantil e do movimento feminista. Eu já fazia parte do movimento LGBTQIA+ e trans, mas não de forma tão efetiva.” 

Linda começou a se engajar em coletivos e movimentos políticos. Criou, na universidade, o Coletivo Queer Trans Feminista Desmontadx. Também fundou, com outras amigas trans, a Amosertrans, Associação e Movimento Sergipano de Transexualidade, que fez um trabalho de conscientização da sociedade sobre direitos e questões que envolvem a população LGBTQIA+, mais especificamente da população trans, expondo dados, como o de que 90% das mulheres trans e travestis estão compulsoriamente na prostituição, a expectativa de vida  da população trans é de 35 anos, e o Brasil é o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo. 

“Essas ações foram muito importantes para que eu me envolvesse com outras pessoas que faziam militância partidária”. Em 2015, fui convidada a participar de uma reunião da Insurgência, uma corrente interna do PSOL. Ao conhecer o partido, ficou encantada e se filiou. Em 2016 se candidatou como vereadora, com 2.508 votos, mas não foi eleita. Em 2018 foi candidata a deputada estadual, com 10.107 votos. “Eu fui votada em 75 municípios aqui do estado de Sergipe, e isso me deu um estímulo para prosseguir. Agora em 2020 eu fui candidata a vereadora de Aracaju, tendo esse resultado histórico muito importante e simbólico da política de Aracaju, de Sergipe, do Brasil.”

Defesa de uma educação transformadora

Como educadora, Linda está consciente sobre a importância de uma educação inclusiva, acolhedora e transformadora, “que enxergue e perceba a singularidade dos alunos”. Ela defende que o processo de ensino seja algo mútuo, sem a presença de superioridade por parte de professoras e professores. “Quando conscientizamos as pessoas e conseguimos fazer a escola como algo que agrega, que estimula a participação dos alunos, tudo isso provoca transformações na vida das pessoas e consequentemente transforma a sociedade quando diminui o preconceito, a violência e a exclusão social”.

Dificuldades como mulher trans

Como mulher trans, Linda enfrentou uma luta dentro do próprio partido. “A gente ainda tem de fazer essa luta, porque os partidos, por mais que já sejam abertos a essas pautas, levantam essas bandeiras, ainda são constituídos na sua maioridade por homens hétero cis. Mas eu senti um apoio muito grande, fiquei muito surpresa com a receptividade das pessoas, principalmente da juventude e das pessoas da periferia.”

Ela diz que muitas pessoas estavam desacreditadas da política quando ela trazia suas propostas. Diziam que os políticos não prestam e são todos iguais. Linda questionava: “Mas você já votou numa travesti? Imagine uma travesti ocupar esse espaço na sociedade, como vai ser revolucionário? Isso é ser igual?”. Isso levava à reflexão, que tornou as pessoas mais abertas ao diálogo. “As pessoas acabavam repensando, até se desarmavam mais e começavam a dialogar, e até mesmo pegavam nosso material para distribuir, era muito interessante”.

Outra questão que incomoda a vereadora, não relacionada à sua transexualidade, é a venda de votos. “Isso me deixava muito triste, a gente percebia que muitas pessoas ainda tinham essa visão de que o voto é uma moeda de troca, e quando alguém me falava sobre isso, me deixava muito mal. Mas eu respirava, tentava dialogar. Dizia que se a gente não votar de forma consciente, a gente sempre vai manter essas mesmas pessoas que desviam dinheiros públicos para se beneficiar e depois comprar votos, mantendo esse ciclo. Era um trabalho de conscientização da importância do voto consciente.”

Importância da representatividade 

A presença de pessoas LGBTQIA+ na política faz com que a população se sinta representada e esperançosa. “Elas podem também se inspirar, se motivar, ocupar esses espaços, que também são nossos e onde a gente tem o direito de estar, permanecer e provocar transformação”.

O aumento da diversidade nas últimas eleições é, para Linda, “um sopro de respiro nesse momento obscuro que estamos vivenciando, com tantas ideias reacionárias, discursos de ódio, fake news, que estão aí no poder e fizeram com que chegasse no poder o atual presidente da república”.

Mensagem para a população LGBT+

“Eu quero que as pessoas LGBTQIA+ acreditem, possam sonhar, não se desanimem. Mesmo que a gente passe por várias situações difíceis como eu passei, de ter sido silenciada desde a infância, excluída de vários espaços, empurrada para a prostituição, como acontece com 90% das mulheres trans e travesti, mesmo que a gente esteja nesse espaço, que a gente possa sonhar, não se intimidar por esse sistema que está no poder, esse sistema hétero cis patriarcal racista. A gente pode sim mudar essa triste realidade mesmo com os desafios, mesmo que a gente ainda se sinta muito limitada, mesmo errando, mas é muito importante que a gente perceba nossas limitações para nos melhorar e perceba nossos erros para que a gente possa acertar mais e dessa forma se fortalecer e se sentir mais preparada para ocupar esses espaços. É muito desafiador, mas quando a gente também faz com amor, verdade, sabedoria e discernimento, a gente vai de alguma forma contribuir para viver numa sociedade melhor.”

– Linda Brasil

 

Monica Benicio (PSOL 50333)

Foto: Reprodução/ Facebook/ Monica Benicio

Trajetória política

Monica Benicio é viúva de Marielle Franco. Foi eleita vereadora no Rio de Janeiro com mais de 22 mil votos. Seu projeto político era na academia, mas decidiu entrar para a política pública. “O afeto e o apoio que recebi dos movimentos sociais, especialmente das feministas, me levou pra esse lugar. Levei um tempo pra entender o que me movia na luta, até que um dia a Conceição Evaristo me disse que não devia ter vergonha de dizer que sou movida pela dor. Caiu a ficha, ao mesmo tempo em que muitas pessoas me pediram para disputar uma vaga nessas eleições.” 

Acesso à cidade

Formada em Arquitetura e Urbanismo, Monica vê grande influência de seus estudos em suas práticas políticas: “não posso admitir tamanha discrepância entre os diversos territórios do Rio de Janeiro. É preciso que as favelas e as periferias tenham acesso pleno à cidade, aos equipamentos e serviços, da mesma forma que todos os bairros”, ela conta. 

“Acredito que ser arquiteta urbanista seja muito importante sobretudo agora enquanto vereadora, pois temos a função precípua de fiscalizar os atos da Prefeitura que acarretam impacto na infraestrutura urbana da cidade. Além disso, ano que vem teremos de incidir sobre o novo Plano Diretor do Rio de Janeiro, que é, mal comparando, a Constituição da cidade. Nele estarão contidas as diretrizes a serem seguidas e, com toda a certeza, o olhar de arquiteta urbanista poderá fazer diferença para pensar uma cidade voltada para o povo, e não para a meia dúzia que sempre lucrou com grandes empreendimentos no Rio.”

– Monica Benicio 

Dificuldades como mulher lésbica

“Todos, todes e todas nós LGBTQI+ sabemos que é nada fácil, tendo em vista que uma das formas de operação ideológica dos conservadores é justamente a desqualificação das opções que divergem do padrão heteronormativo”, comenta. “Os que hoje estão no poder identificam os nossos corpos como perigosos, porque uma vez que mulheres, lésbicas, negras, gays, trans, LGBTIs de forma geral, adentram os espaços de poder, estamos evidenciando que este lugar é para todos e não apenas para o homem branco hétero.” 

Por isso, ela explica, é tão difícil fazer compreender esta luta. “Por ser interseccional, é uma das mais belas e nobres disputas que podemos apresentar no cenário atual. O feminismo em que acredito preza pela mais ampla concepção da Democracia, da defesa dos Direitos Humanos, a defesa da vida. Ele é antirracista, é plural e ao contrário do que muitos pensam ele não é o oposto do Machismo. Este quer a opressão, enquanto nós queremos a libertação.”

Importância da representatividade 

Monica conta que desde o atentado contra Marielle e a saída de David Miranda para a Câmara dos Deputados, não se tem nenhuma representante LGBTQIA+ na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. “Representatividade importa e, se eleita, com certeza faremos um trabalho bastante voltado para este segmento da população”. Isso começará pelo simbolismo que será a reapresentação do PL da Visibilidade Lésbica, que Marielle não aprovou por apenas dois votos. 

A vereadora diz que uma das maiores demandas da comunidade diz respeito à falta de dados sobre a população LGBTQIA+ e, por isso, irá propor a criação de um mecanismo capaz de monitorar e produzir informações confiáveis no município do Rio de Janeiro. “Além disso, temos que discutir a empregabilidade da população LGBTQIA+, especialmente das pessoas trans, que atravessam grande dificuldade para terem acesso ao mercado de trabalho. No pano de fundo está o preconceito, que é fruto de ignorância.” 

Para solucionar a problemática, ela propõe um esforço de promoção da Educação em Direitos Humanos, para que todos aprendam a respeitar e a valorizar as diferenças. “Proponho ainda o fortalecimento da rede de atendimento e orçamento para LGBTQIA+ vítimas de violência, bem como realizar campanhas de conscientização da população em geral contra a LGBTQIA+fobia. Os desafios são enormes e nossa vontade de mudar o Rio é do tamanho deles.”

O aumento da diversidade na política, para Monica, é um claro sinal de que a sociedade brasileira quer evoluir, “apesar de todas as correntes que nos impõem para que nosso país permaneça amarrado no atraso. Eu sinto que estamos num momento de ascensão da diversidade, mesmo considerando que o quadro geral seja de violência política e retrocessos. Fico feliz, mas sem deixar de estar preocupada.”

Legado de Marielle

Monica procura, a partir de suas pautas, continuar o legado de Marielle: “depois da eleição, minhas redes foram inundadas com pessoas dizendo que seu legado tinha voltado à Câmara. Eu vejo que isso se dá principalmente pelas lutas feministas e dos direitos LGBTQI+, que também são minhas. Vejo continuidade no legado. Afinal, mais do que o que se deixa, legado é também o que se leva adiante.”