Histórias de quem trabalha com vendas pelo campus da USP
por Renato Brocchi
Foto: João Francisco Motta/JC
Jorge Luis organiza seus livros sobre uma comprida bancada em frente ao Restaurante Central da USP de segunda a sexta. Também pendura atrás de si uma coleção de calças listradas, saias multicoloridas e casacos longos. Precisa ficar de olho no céu. “Me vou daqui porque chega a chuva e tenho que sair” — ou, ao menos, cobrir os livros com uma lona. “Mas estou sempre no chão do DCE [Diretório Central dos Estudantes, cuja sede fica ao lado do restaurante], porque ele foi quem me liberou esse lado daqui.” Jorge trabalha de quatro a cinco horas por dia, desde o almoço até o meio da tarde.
Este ano marca seu retorno ao campus — seu e de todos os outros vendedores na USP — depois dos momentos mais duros da pandemia. “Eu não estive trabalhando durante a pandemia. Foi proibido. Durante dois anos e meio não vim aqui. Estou voltando recentemente”, lembra Jorge. Nesse período, “isso era uma tristeza. É como entrar em sua casa e não encontrar ninguém.” Seu exílio do campus foi marcado por um trabalho intermitente, mais “para sobreviver” do que para ganhar dinheiro. “Profissionalmente, todos nós estamos com problemas. Nenhum de nós pode se desenvolver.”
Seus colegas comerciantes (de livros, roupas, artesanato e afins) estão espalhados pelos campi da USP e de outras universidades. Olúmúyiwá Anthony Adékòyà é um deles. Monta sua barraca de açaí — que maneja há mais ou menos três anos — perto da banca de Jorge, também ao lado do DCE. Sobre a USP, diz que “aqui é uma comunidade totalmente diferente de lá fora. É meio sossegado.” Olúmúyiwá chegou a trabalhar fora da universidade vendendo milho e açaí. Hoje, se limita ao campus, e trabalha, principalmente, durante o almoço dos estudantes.
As vendas do dia a dia raramente são previsíveis. Jorge não consegue dizer uma cifra média “porque isso é como um termômetro. Tem um dia de chuva, tem um dia de sol. Nem todos os dias é dez. Tem dia que também é zero”. Sua banca vende livros de segunda mão. Às vezes, Jorge distribui cartazes anunciando que compra usados. Mas ele reforça ao JC que não se interessa por qualquer publicação: “a preocupação nossa é sempre ter livros a nível dos estudantes, do estudo superior deles.” Nessa empreitada, Jorge recebe a ajuda de alguns professores e alunos para decidir o que merece ser exposto em sua banca. “Sempre perguntamos aos estudantes se agrada ou não agrada nosso trabalho”, salienta. “Não é qualquer livro: sempre um livro teórico, uma história, um acontecimento. Essas coisas.”
Uma história, um acontecimento: foi algo assim que trouxe Jorge e Olúmúyiwá ao Brasil . “Eu vim por convênio”, conta o alfarrabista, que veio para estudar “estruturas metálicas” na USP em 1989. “Naquela época, o governo militar do Peru fez convênio com o Brasil. Foi um grupo ao Brasil, e ao Peru foi um outro grupo para estudar”. Seu país natal passava por uma época de instabilidade — não exatamente uma raridade na América Latina dos anos 80. A presidência de Alan García Pérez disputava o controle do país com grupos guerrilheiros. A política nacional rumava para a ditadura de Alberto Fujimori nos anos 90.
“Eu estudava estruturas metálicas. Porque nós estávamos passando naquela época por um período de guerra no Peru. Precisava-se engenheiros; havia poucos”, lembra Jorge. “O Peru optou por mandar técnicos. Nós viemos para cobrir essa parte técnica”. “Nós” eram 34 peruanos. Depois de quitadas as suas obrigações com o país natal, Jorge decidiu ficar por aqui. “Teve gente que foi para o norte, para o sul. Eu fiquei aqui em São Paulo. Eu fiz minha vida aqui.” Sempre trabalhou com comércio, quase sempre com livros. Além de São Paulo, passou um breve período de labor em Santa Catarina — mas a USP lhe agradava mais. Voltou para cá. “Fui ficando, fui me casando com uma brasileira, já tive meu filho.”
Olúmúyiwá no campus da USP. Foto: Renato Brocchi/JC
Olúmúyiwá também chegou ao Brasil na década de 80. Ele queria fazer um curso de bank management (gestão bancária), mas não o encontrava nas universidades nigerianas. Um amigo lhe disse que esse curso podia ser feito no Brasil. “Aí eu vim aqui, e vi que não tem [o curso]. Ele [o amigo] falou que eu tinha que fazer administração”, o que não lhe agradou muito. Com a confusão, Olúmúyiwá resolveu largar tudo e cursar editoração na USP.
O curso o atraiu “porque eu sou muito apaixonado por livros, gosto muito de ler”. Mas o mercado de trabalho não lhe reservava muitas facilidades. “Tem muito mais gráfica do que editora” e, para conseguir um emprego numa casa editorial, era tudo praticamente “só por indicação”.
Formou-se em 1992. O único emprego formal que teve nessa época foi no jornal Primeira Hora, de Osasco. No mesmo ano de sua graduação, entrou no mestrado em antropologia social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que concluiu em 1998. Sua dissertação de mestrado resultou no livro Yorubá, tradição oral e história, publicado em 1999 pela editora Terceira Margem. Nesse mesmo período, começou a ensinar inglês e yorubá no Núcleo de Consciência Negra da USP, além de dar aulas particulares e em terreiros. Além de São Paulo, já lecionou em cidades como Osasco, Mauá e Santo André.
Os alunos de suas aulas de yorubá minguaram durante a Covid. “Eu deixei de dar aula no meio da pandemia, porque ela demorou mais ou menos dois anos e meio. Então muitas pessoas foram à falência, dinheiro não circulava. Aí cada um tem que se virar, na medida que puder”. Por enquanto,Olúmúyiwá diz que prefere vender açaí a voltar a dar aulas, “porque dar aula é mais complicado. Você vai preparar aula, e, às vezes, você chega lá e tem um ou dois alunos que não estão interessados. Vendendo açaí, eu tenho meu público.”
Tanto Olúmúyiwá quanto Jorge se lembram do Brasil em papos de aranha quando vieram para cá. “Cheguei na época das diretas já, quase no finalzinho da ditadura” conta Olúmúyiwá. “A vida naquela época era diferente do que é hoje em dia. Vivemos uma época muito difícil, porque a inflação tomou conta de tudo.” Jorge, por sua vez, conta que chegou aqui na época de Tancredo, “e você sabe a história que falam: ele entrou por uma porta, e por outra já saiu.”
Olúmúyiwá se diz cansado, e pensa em se aposentar. O tempo de trabalho, por outro lado, não parece ter desanimado Jorge. “Já vou fazer 70 anos. Já sou um ‘aposentado’. Mas gosto de estar lutando. Gosto desse clima de universidade. Isso é o que me traz aqui. Como se diz? Essa ‘energia’”. É a convivência humana no campus — com as sempre enérgicas novas gerações — que o faz continuar. “A pessoa que tem 20 anos tem uma energia bárbara. Isso que me agrada no ser humano. Isso que me mantém aqui dentro da universidade.” De vez em quando, entretanto, há um ou outro aborrecimento — a chuva que se anuncia ao fim de sua entrevista ao JC periga molhar seus livros expostos ao ar livre, por exemplo. Uma livraria comum não traria esse risco. Mas, frisa Jorge, “se eu for para outro lugar, não sei se vou me sentir bem.”