Apuração exclusiva do JC confirmou o prosseguimento da cultura trotista em Piracicaba – e recebeu relatos de Lorena e Ribeirão Preto
Por Ingrid Gonzaga e Raquel Tiemi
“O trote está acontecendo aqui, mas não chamam de ‘trote’, agora chamam de ‘ralo’, porque trote é crime, né? Então, trocaram de nome”, ironiza Ana*, estudante de Engenharia Agronômica da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, localizada em Piracicaba.
O assunto ganhou holofotes em dezembro do ano passado, após a publicação de uma série de denúncias de trotes no campus da Esalq pela Agência Pública. Ao longo dos meses de março e abril, o Jornal do Campus (JC) confirmou que as práticas seguem ocorrendo em Piracicaba e recebeu relatos de outros dois campi – Ribeirão Preto e Lorena.
Ao todo, a reportagem ouviu 13 pessoas para a elaboração do texto. Os casos citados se referem a anos entre 2019 e 2024. A Esalq diz que o trote é “proibido e intolerável”. A Escola de Engenharia de Lorena diz que não há registros de trote. A Prefeitura do campus de Ribeirão não se pronunciou.
O JC testou, ainda, o serviço de denúncias do disque-trote. Foram 3 ligações diárias durante 15 dias sem resposta.
“Ralo”? É trote
Segundo os cinco alunos da Esalq entrevistados pelo JC, os trotes exigem uma série de condutas dos calouros, chamados de bixos: “Para se apresentar, o bixo deve ajoelhar diante do veterano, chamado de doutor, se autodepreciar e depois elogiá-lo”; Na presença de uma pessoa de anos anteriores, você deve deitar e olhar para o chão”, “não é permitido falar ‘eu acho’, porque bixo não ‘acha’ nada”.
Caio*, também estudante de Engenharia Agronômica, relaciona a socialização no campus com a cultura trotista e diz que, desde a semana de ingresso, “as pessoas são ensinadas a como se comportar na Esalq”. As chamadas “tradições esalqueanas” não se limitam aos estudantes, mas se estendem a professores e ex-alunos. Luís Galeão, professor do Instituto de Psicologia (IP) da USP, explica: “Pela socialização, essa cultura institucional é interiorizada e as pessoas acham que devem repetir o padrão.”
Apesar de também ocorrerem dentro do campus, os “ralos” são mais recorrentes em moradias estudantis ou “repúblicas”. Caio conta que morou em uma república por pouco mais de um ano, mas decidiu morar sozinho por não concordar com a dinâmica da casa.
Nos seis primeiros meses do ano, os calouros conhecem e moram de graça nas repúblicas de Piracicaba, processo conhecido como “estágio”. Ana avalia que, além de cômodo, principalmente para estudantes que estão longe de suas cidades, é “muito fácil se encantar por essa realidade”.
Caio conta o dia da sua “efetivação”, quando os calouros podem ser oficialmente aceitos na república: “É um dia em que eles te deixam muito bêbado. Nos vendaram e levaram até um milharal dentro da Esalq, à noite. Lá, nos ajoelharam e perguntaram sobre a república e seus moradores. Em casa, quando já estávamos alcoolizados, para a fase final, contrataram prostitutas e falaram que todos teriam relações”.
Ele ainda relembra a entrada pela portaria da Esalq, em que seus veteranos alegaram à segurança do campus que estariam entrando para acompanhar um experimento que ia acontecer. “Tem vários campos experimentais dentro da Esalq: campo de soja, de milho, de cana, área com bois”, esclarece.
Os trotes pelos outros campi
Os trotes continuam a ser praticados em todas as três unidades investigadas. Situações parecidas, como consumir exageradamente álcool, usar adereços e fantasias, não poder falar “eu acho” e a relação com as repúblicas ocorrem nos campi.
Leo*, estudante da Faculdade de Economia e Administração da USP de Ribeirão Preto, afirmou que, enquanto morava em república, foi obrigado a beber cachaça e depois pular na piscina em uma madrugada fria. “O veterano não gostava de um calouro específico. Ele pegou ração, misturou com óleo e fez o bixo mastigar. Depois disso, o garoto começou a vomitar”, relatou.
O que fortalece a cultura trotista?
Antônio Almeida, professor na Esalq e autor de livros sobre trotes, explica que o problema é mais amplo: “Acredito que ainda acontece e, por uma série de circunstâncias, está mais escondido. É uma forma de gerar um grupo de extrema direita, politicamente aguerrido, coeso e agressivo”. O professor participou da CPI do Trote, em 2014. Após a comissão, foi criada uma lei estadual que proibiu a prática em qualquer nível de ensino em SP.
Felipe Scalisa, autor do livro Trote e Autoritarismo, analisa as denúncias da CPI e os depoimentos “vazios” dos intimados. Felipe percebeu que não havia reflexão, mas apenas o cumprimento de ordens: “Não eram especialmente preconceituosos nem perversos, só estavam no intuito de pertencimento, reproduzindo uma cultura de forma acrítica”.
Padrões nas perseguições aos contrários ao trote se revelaram na pesquisa, em especial a ameaça profissional. Ainda presente na Esalq, trata-se de um discurso de que pessoas anti-trote seriam prejudicadas acadêmica e profissionalmente — já que toda a rede de contatos da área faria parte da cultura trotista.
“No caso da Medicina USP, eles fizeram um cartaz com o rosto e todas as informações das pessoas que depuseram na CPI e que eram contra o trote para distribuir e colocar em prática o plano de não deixar nos formar”, relembra Felipe.
É só uma brincadeira?
Ainda que se diga que “você pode falar não” aos trotes, Luís explica que a pressão social é determinante na submissão às atividades: “Existe a coerção do grupo. Se o grupo está realizando uma atividade e você é o único que se insurge contra aquilo, tem toda a carga de não estar aceitando o que o grupo está fazendo”.
Ele também fala sobre a importância do apoio institucional à pessoa denunciante. “Uma segunda violência muito grave é culpabilizar a vítima”, diz. O fato de alguém ter se submetido a uma situação de violência não diminui a denúncia ou a violência sofrida.
Maria Eugênia Rudge Leite, professora de Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), reforça que os trotes não são só brincadeiras, como podem ser tipificados: “Toda vez que há um trote violento, ainda que não tivesse uma lei específica falando se pode ou não, é crime.” Ela explica que as punições variam de acordo com o crime cometido.
Como combater?
Maria afirma que, apesar da importância de uma lei para barrar os casos trotistas, o antídoto mais eficaz contra essa cultura deve partir dos estudantes. “A mudança cultural tem que vir do lado dos que recebem os calouros. Não dá para colocar toda a responsabilidade de denunciar nos que estão entrando na faculdade”, avalia.
“Eu não percebi uma mudança de postura da diretoria da Faculdade [de Medicina], mas percebi uma mudança cultural entre os estudantes”, exemplifica Felipe ao mencionar a recente posição contrária dos alunos ao Show Medicina, fraternidade trotista da instituição. Conforme a última edição do JC mostrou, em plebiscito realizado, das 585 respostas válidas de estudantes de Medicina, 406 (69,4%) se mostraram contra o seu retorno.
Para Antônio, além da proibição total dos trotes, deve haver uma mudança curricular nos cursos com a adição de disciplinas de Ciências Humanas. “A universidade precisa decidir se quer ser democrática e inclusiva. Essa não pode ser uma decisão superficial, tem que trazer enormes consequências”, conclui.
O outro lado
O JC tentou contatar a Pró-Reitoria de Graduação (PRG) para obter os dados do Disque-Trote – ferramenta criada para atender denúncias –, sete vezes durante a produção da matéria, mas não obteve resposta em nenhuma das tentativas. Apenas 15 dias depois, por meio da Lei de Acesso à Informação, o JC recebeu informações de todas as denúncias feitas via Disque-Trote de 2019 até 2024.
Ao todo, foram 19 reclamações, que englobam relatos como: calouros que “foram obrigados a entrar na caçamba de um carro e transitar pela cidade de maneira perigosa”, relatos de racismo e caso de nudez dos veteranos diante dos calouros durante a semana de recepção.
Na visão de Antônio, mesmo não tendo analisado o Disque-Trote especificamente em seus estudos, considera que o número de denúncias para cinco anos não corresponde com a realidade universitária. “A ferramenta é desmoralizada. Nada acontece com as denúncias feitas, então, as pessoas se sentem desmotivadas a continuar ligando”.
A reportagem ligou três vezes ao dia para o Disque-Trote, desde o dia 1º de abril até a data de conclusão desta matéria, 16 de abril. Em todas as tentativas, a mensagem era de que o número não estava recebendo chamadas. O aplicativo Disque-Trote afirma que o serviço funcionaria entre 22/01 e 30/04, das 8h até as 20h, nos dias úteis. O formulário que recebe denúncias por escrito estava disponível. Desde 27 de Abril de 1999, a Portaria GR N° 3154 proíbe o trote dentro ou fora do âmbito da Universidade.
Quando indagada se tinha conhecimento sobre a situação do Disque-Trote e se alguma providência seria tomada, a PRG respondeu: “Todas as Unidades e Prefeituras dos campi receberam Ofício da PRG informando sobre a Semana de Recepção de Calouros e período do Disk [sic] Trote”. Além disso, afirmou que não havia sido comunicada oficialmente sobre o número não estar em funcionamento.
De todos os campi mencionados, o JC recebeu respostas da PRG, Esalq e Lorena. A reportagem tentou contato com a Prefeitura de Ribeirão Preto, mas não recebeu resposta até a data de fechamento do jornal. Confira todas as respostas na íntegra pela versão digital da matéria.
*Para preservar a integridade e o anonimato dos estudantes, os nomes foram alterados